Este romance foi publicado em 1894, portanto mais de 30 anos depois de Flaubert ter imortalizado Madame Bovary. Para o leitor, Mme. Teresa Martin-Bellème lembrará uma Bovary urbana, ainda que Teresa não seja pintada com as mesmas cores psicológicas com que Flaubert constrói Emma. Mas há inúmeras semelhanças.
Teresa, filha de financista bem sucedido, M. Montessuy, viveu no meio aristocrático. Em casamento mais negociado do que resultado de atração, casa-se com o conde Martin-Bellème, um político que ao final do enredo se tornará Ministro das Finanças da República. Ele mantém com a esposa um relacionamento de amizade, sexualmente frio ou quase inexistente.
Ao salão de Teresa acorrem poetas, escultores, pintores e, obviamente, a sociedade parisiense. Foi neste ambiente que conheceu Robert Le Ménil, que se tornará seu primeiro amante (como Léon foi o primeiro amante de Emma Bovary). Enquanto Robert é apaixonado por Teresa, esta logo começa a se cansar dos encontros na Rua Spontini, a casa de encontros dos dois.
No salão, um dos convivas, Paul Vence, fala sobre o escultor Jacques Dechartre, que gostaria de apresentar a Teresa. Inicialmente Teresa se mostra um tanto contrariada, mas aceita que lhe apresentem o artista:
– Não sou eu que quero que mo apresentem. Mas querem mo apresentar. É um escultor.
O amante Le Ménil não gostou de ela querer conhecer caras novas, e se dá o seguinte diálogo:
– Um escultor? Os escultores são, em geral um pouco rudes.
– Oh! esse parece que trabalha tão pouco! Mas, se o contraria que eu o receba, não o receberei.
– Contrariar-me-ia que outros lhe tomassem uma parte do tempo que me concede.
– Não tem motivo para se queixar de que eu seja muito mundana. Nem sequer fui ontem à casa de Mme. Meillan.
– Tem razão para lá aparecer o menos possível: não é casa que lhe convenha.
A partir deste diálogo, o leitor experiente já sabe o desenrolar dos fatos: Teresa terminará com Le Ménil em algum momento; Dechartre será seu segundo amante…
Obviamente para chegar a estes fatos simples, muita água corre na história. Muitos encontros dos amantes, até a despedida final quando Le Ménil sairia para uma caçada. Durante sua ausência, Teresa decide visitar sua amiga, a poeta inglesa Vivian Bell que vive em Florença. Assim, ela parte para a residência da amiga, no Fesiole, donde se tem vista sobre toda a cidade. Como não poderia deixar de ser, as aparências obrigam, foi acompanhada de Mme. Marmet, uma velha senhora, viúva de um acadêmico.
Será em Florença que se dará o encontro com Dechartre. Este inicialmente se mostra tímido e não confessa sua paixão, mas Teresa logo a percebe. E começa então um pequeno tempo de negativas, até que o encontro se dê e os amantes se descobrem apaixonados. Ao contrário da frieza do marido, M. Martin e do protocolar e bem comportado Le Ménil, Jacques se mostrará amante ardoroso e violento: não podia dar coisa diferente, Teresa se apaixona perdidamente por ele.
Será de Florença que virá o próprio título do romance: o lírio vermelho é a flor símbolo da cidade. E Dechartre, mais tarde, desenhará um lírio para ser confeccionada uma joia para Teresa: um lírio de rubis.
Le Ménil desconfia do que pode estar acontecendo e vai para Florença. Houve um encontro de ruptura entre Teresa e ele, mas Jacques que vira Teresa postar uma carta e que soube que ela tinha ido à estação de trem para se despedir de um “desconhecido”, começa a ter ciúmes. Teresa mente, diz que ele era o único…
Em Paris, no entanto, num restaurante, um amigo de passagem lhe conta que todo mundo sabe: Teresa e Le Ménil são amantes. Escreve para Teresa, ainda em Florença, uma carta carregada de desespero e ciúmes. Esta carta faz Teresa voltar para Paris, tudo se acerta e passa a viver uma vida de felicidade com Jacques, que, no entanto, sempre se mostrará cada vez mais ciumento e desconfiado.
Numa das tardes em que Teresa, já bastante descuidada, vai para a casa de Ternes, residência de Jacques para o encontro de sempre, é seguida por Le Ménil que lhe faz a proposta de reatar as relações.
Em sessão da Ópera, Le Ménil vai ao camarote de Teresa. Jacques também estava presente. Ao colocar o manto sobre Teresa, Le Ménil lhe diz que a espera as três horas da tarde na Rua Spontini, como sempre. Jacques ouve a proposta e se desespera: passa uma noite andando por Paris enquanto Teresa também não dorme. No dia seguinte, ela vai até Ternes e confessa que teve um amante no passado, mas que o passado já não importa, que ama somente a ele, Jacques. Este diz não acreditar nela, insiste neste refrão, e mesmo tendo tido uma relação, o amante continua amargurado. No dia seguinte, Teresa retorna, encontra Jacques ainda enciumado. E o último parágrafo da história dá a entender que a relação acabou.
Não é uma tragédia como aquela sofrida por Emma Bovary, que ao final se suicida. Aqui a tragédia é a perda do amante para uma mulher urbana, mundana, esposa de um ministro que se verá forçada a recepções a políticos… Há, no entanto, outra coincidência: Emma teve dois amantes, Léon e Rodolphe; Teresa terá Le Ménil e Dechartre…
A escrita de Anatole France é romântica, carregada de imagens – A noite já descia do céu e as primeiras estrelas tremiam entre os ramos. Na erva molhada suspirava a flauta dos sapos (grifos meus) – mas também desvelando concepções de mundo, como no diálogo entre Teresa e Choulette (um poeta e filósofo que sempre anda em meio às pessoas simples), quando entram na Catedral no interior (Joinville?):
– A tristeza das igrejas, à noite, emociana-me; sinto nelas a grandeza do nada. [Teresa}
– Temos, no entanto, de acreditar em alguma coisa, respondeu ele [Choulette]. Se não houvesse Deus, se nossa alma não fosse imortal, seria muito triste.
Ela permaneceu por muito tempo imóvel, sob os panos de sombra que pendiam das abóbadas; depois, respondeu:
– Meu pobre amigo, já não sabemos o que fazer desta vida tão curta, e ainda quer outra que não acabe nunca!
Em outra passagem, quando M. Martin faz suas confabulações políticas constituindo um novo ministério, um senador que se tornará mais tarde Ministro da Justiça, se sai com esta lição de política:
… O verdadeiro apoio de um governo é a oposição. O Império governou contra os orleanistas e contra nós; o Dezesseis de Maio governou contra os republicanos. Mais felizes governamos contra a direita. Que boa oposição que ela era, a direita, ameaçadora, cândida, impotente, imensa, honesta, impopular! Era preciso conservá-la. Não souberam. E depois, digamo-lo, tudo se gasta. Entretanto, é preciso governar sempre contra alguma coisa. Já não nos restam hoje senão os socialistas, para nos darem o apoio que a direita nos prestou durante quinze anos, com tão constante generosidade. Mas são muito fracos. Seria preciso aumenta-los, ampliá-los, fazer deles um partido político. Na hora atual é esse o primeiro dever de um ministro do Interior. Governar contra: uma lição maquiavélica que muitos governos seguem… e aqueles que tentam governar para todos acabam sendo traídos por aqueles que dele se beneficiaram, porque lhes faltaram “inimigos”.
Referência. Antole France. O lírio vermelho. Rio de Janeiro : Pongetti Editores, 1959.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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