Este é um estudo de fôlego, em que o autor ultrapassa os limites temporais e espaciais: traz mitos e heróis da Antiguidade, passa do Oriente para o Ocidente, reencontra mitos dos povos originários da América. Parece que nada lhe escapa.
Em certo sentido, este pode ser um livro de cabeceira, para retornar e buscar as narrativas mitológicas quando necessário. O viés analítico é a psicanálise. Trata-se de um estudo moderno que recupera as narrativas para compreender a psique humana.
É impressionante como os traços gerais do herói se repetem em diferentes civilizações! Sempre o ‘chamado’, o eleito dos deuses que precisa reconhecer-se como tal, sair em busca de algo ‘redentor’ (que pode ser uma princesa) enfrentando mil perigos, mas recebendo dos ‘auxiliares’ ajudas inesperadas e mágicas. O herói – seja ela do bem ou do mal – sempre sai vitorioso. E chega do outro lado. O problema será seu ‘retorno’ ao mundo dos homens, onde exercerá este mandato difícil de fazer a relação entre os dois mundos – aquele da vida e aquele do além da vida.
Conta-se a história de um erudito confuciano que suplicou ao vigésimo oitavo patriarca budista, Bodhidharma, “que pacificasse sua alma”. Bodhidharma retrucou: “Apresente-a e eu a pacificarei”. O confuciano replicou: “Eis o meu problema; não consigo encontrá-la”.Bodhidharma disse: “Seu desejo foi atendido”. O confuciano entendeu e partiu em paz.
Aqueles que sabem, não apenas que o Eterno vive neles, mas que eles mesmos, e todas as coisas, são verdadeiramente o Eterno, habitam os bosques de árvores que atendem aos desejos, bebem o licor da imortalidade e ouvem, em todos os lugares, a música silenciosa da harmonia universal.
Encontrar a harmonia cosmogânica! Encontrar a paz da alma. Nos mitos e heróis analisados, há sempre este encontro consigo mesmo. No entanto, para realizar a sua função como mitos e como heróis, eles necessariamente se voltam para os outros: a quem ensinam, a quem falam, a quem abençoam… Como se vê na pequena narrativa aqui transcrita: Budhidharma ouve, concede uma palavra-chave e pacifica.
O caminho do herói – que é o modelo prototípico que cada indivíduo tenta realizar, mas que não sabe de antemão se é ou não um dos “chamados” – passa sempre por sua auto-aniquilação e com seu renascimento. Todos os ritos iniciáticos apontam para este renascer, como outro.
… a passagem do limiar constitui uma forma de auto-aniquilação. […] Mas, neste caso [do herói grego Héracles que mergulhou pela bocarra do monstro, arrebendou-lhe a barriga e o deixou morto, salvando assim a bela Hesfone, filha do rei] em lugar de passar para fora, para além dos limites do mundo visível, o herói vai para dentro, para nascer de novo. O desaparecimento corresponde à entrada do fiel no templo – onde ele será revivificado pela lembrança de quem e do que é, isto é, pó e cinzas, exceto se for imortal. O interior do templo, ou ventre da baleia, e a terra celeste, que se encontra além, acima e abaixo dos limites do mundo, são uma só e mesma coisa. Eis por que as proximidades e entradas dos templos são flanqueadas e defendidas por colossais gárgulas: dragões, leões, matadores de demônios com as espadas desembainhadas, anões rancorosos e touros alados. Eles são guardiães do limiar, a quem cabe afastar todos os que forem incapazes de encontrar os silêncio mais elevados do interior do templo.
A análise, no entanto, insiste em dois aspectos: 1) A noção de uma lei cósmica, a que toda a existência serve e à qual o próprio homem deve curvar-se, passou desde então pelos estágios místicos preliminares representados na antiga astrologia, e hoje é simplesmente aceita, em termos mecânicos, como fato consumado. 2) A resolução do impasse da existência, a certeza da morte – uma das condições do herói é reconciliar-se com o túmulo – é sempre individual: o herói encontra o Eterno dentro de si; o herói se reconcilia consigo mesmo.
O ascetismo dos santos medievais e dos iogues da Índia, as iniciações nos mistérios helenísticos, as antigas filosofias do Oriente e do Ocidente são técnicas para levar a consciência individual a retirar a ênfase das vestes. As meditações preliminares do aspirante afastam-lhe a mente e os sentimentos dos acidadentes da vida, levando-o ao ponto essencial: “Não sou isto, nem aquilo”, ele medita, “não sou minha mãe, nem meu filho que acabou de morrer; nem meu corpo, que está enfermo ou velho; nem meu braço, meus olhos, minha cabeça; nem a soma de todas essas coisas. Não sou meu sentimento, nem minha mente, nem meu poder de intuição.” Por meio dessas meditações, ele é levado às suas próprias camadas profundas e termina por alcançar imperscrutáveis percepções. Não há quem possa retornar desses exercícios e levar a sério o fato de ser o Sr. Fulano de Tal, de tal cidade, Estados Unidos. – A sociedade e as obrigações ficam de lado. O sr. Fulano de Tal, tendo descoberto seu próprio potencial, volta-se para dentro de si e se distancia.
Bem ao estilo do tratamento psicanalítico: a solução é individual, é o exagero do individualismo. Penso que esta segunda característica da análise acaba por sombrear todo o retorno do herói (ou do mito) e sua relação com a comunidade de que participa. Trata-se, sempre, de encontrar o EU em tudo. Este “EU” é um “TU” transcendental, que pode ser tanto a energia quanto o vazio… “… hoje não há nenhum sentido no grupo – nenhum sentido no mundo: tudo está no indivíduo. Mas, hoje, o sentido é totalmente inconsciente. Não se sabe o alvo para o qual se cmainha. Não se sabe o que move as pessoas. Todas as linhas de comunicação entre as zonas consciente e inconsciente da psique humana foram cortadas e formos divididos em dois.”
O individualismo exacerbante das soluções próprias. O TU é o EU encontrado em mim mesmo, a vida vivida como mistério, não como história. A sociedade é ‘reformada’ à imagem do EU integrado, no acordo consigo mesmo. O homem molda a sociedade. Não é a sociedade que molda o homem que consegue se encontrar a si mesmo no eterno que nele há. E como todo o sentido do homem moderno é inconsciente, eis que será ele próprio que dará sentido a si mesmo e à sociedade. Como mostra o parágrafo final do estudo:
O herói moderno, o indivíduo moderno que tem a coragem de atender ao chamado e empreender a busca da morada dessa presença [existência divina, inexaurível e multifária, que constitui em todos nós, a vida], com a qual todo nosso destino deve ser sintonizado, não pode – e, na verdade, não deve – esperar que sua comunidade rejeite a degradação gerada pelo orgulho, pelo medo, pela avareza racionalizada e pela incompreensão santificada. “Vive, diz Nietzsche, como se o dia tivesse chegado”. Não é a sociedade que deve orientar e salvar o herói criativo; deve ocorrer precisamente o contrário. Dessa maneira, todos compartilhamos da suprema provação – todos carregamos a cruz do redentor -, não nos momentos brilhantes das grandes vitórias da tribo, mas nos silêncios do nosso próprio desespero.
Referência. Joseph Campbell. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo, Cultrix, 1993 (original de 1949).
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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