O estudante brasileiro é um incapaz?

Nas últimas semanas, tenho lido algumas das várias manifestações sobre uma tal “ideologia de gênero”, como se existisse, inclusive, apenas uma única ideologia em embate. Algumas das manifestações, coerentes com seus autores e/ou agentes enunciadores, chegam a ser apocalípticas:

O tempo urge! Está para ser ultimado o decreto sobre a Base Nacional Curricular Comum em nosso país que, se for deixado com a menções sobre a ideologia de gênero, nos deixará à mercê de um futuro perigoso” (JB, 13/11/2017)

O MEC introduziu dezenas de referências à Ideologia de Gênero em todas as matérias que compõem a Base Nacional Comum Curricular, que será obrigatória, a partir do ano que vem, a todas as escolas públicas e privadas do Brasil.” (CITIZENGO, 05/09/2017)

 

Como estou em um constante retorno à Base Nacional Comum Curricular para estudos, resolvi fazer uma rápida consulta no texto para checar como o gênero aparece por lá. Vamos aos dados:

  • No documento de 396 páginas, a palavra gênero é utilizada 135 vezes, mas, a maior parte desse uso é para se referir a gêneros textuais, discursivos, digitais e literários na área de Linguagens, predominantemente Língua Portuguesa e em Língua Inglesa (104 usos), e para gêneros artísticos e musicais em Artes (04 usos).

 

  • Há duas menções ao termo identidade de gênero; uma no texto introdutório da Base e uma na disciplina de Ciências e uma em História. E, apesar de ser coisa diversa, o termo identidade de gênero tem sido forçosamente associado ao que se está construindo como “ideologia de gênero”.

 

  • As outras 24 utilizações da palavra gênero estão em expressões como questões de gênero, marcadores de gênero, preconceito de gênero, diversidade de gênero.

 

O texto que introduz a BNCC afirma:

 

p. 11 – A equidade reconhece, aprecia e acolhe os padrões de sociabilidade das várias culturas que são parte da identidade brasileira. Compreende que todos são diversos, que a diversidade é inerente ao conjunto dos alunos, inclusive no que diz respeito às experiências que trazem para o ambiente escolar e aos modos como aprendem.

Assim, a equidade requer que a instituição escolar seja deliberadamente aberta à pluralidade e à diversidade, e que a experiência escolar seja acessível, eficaz e agradável para todos, sem exceção, independentemente de aparência, etnia, religião, sexo, identidade de gênero, orientação sexual ou quaisquer outros atributos, garantindo que todos possam aprender.

 

Outro trecho apresenta o seguinte:

p. 19 –  Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de origem, etnia, gênero, orientação sexual, idade, habilidade/necessidade, convicção religiosa ou de qualquer outra natureza, reconhecendo-se como parte de uma coletividade com a qual deve se comprometer

 

Se tais afirmações causam tanto desespero a alguns grupos, é necessário a eles que repensem sua forma de estar no mundo, assim como é necessário rever suas bases ideológicas e/ou dogmáticas que os tornam tão vulneráveis e suscetíveis nas discussões. Caso contrário, será necessário questionar, não a elaboração de currículos, mas a própria existência da escola.

Não há sentido se em uma escola não se puder:

p. 193 –  Problematizar preconceitos e estereótipos de gênero, sociais e étnico-raciais relacionados ao universo das lutas e demais práticas corporais e estabelecer acordos objetivando a construção de interações referenciadas na solidariedade, na justiça, na equidade e no respeito;

p. 301 – Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética) e a necessidade de respeitar, valorizar e acolher a diversidade de indivíduos, sem preconceitos baseados nas diferenças de sexo, de identidade de gênero e de orientação sexual.

É preciso problematizar essa crença de que os estudantes são frágeis, ingênuos e que só tem acesso ao mundo por meio daquilo que seus adultos tutores lhes apresentam. Por muito tempo as crianças foram tratadas como meras crias humanas, como adultos imperfeitos, como um cidadão em potencial que se define entre os lugares de filho (família) e de aluno (aluno). Não se pode limitar a pensar que o estudante seja apenas um alumno ou um infante (cuja etimologia remete àquele que não fala) que “deve ser formado para o futuro”. Como sujeito de um mundo em dispersão, é preciso se dar conta de que o jovem estudante está imerso em um universo de informações e experiências que extrapolam os limites, as certezas e as prerrogativas que seus “tutores” lhe oferecem.

Os jovens estudantes não são ingênuos. Parece-me que os ingênuos são outros!

 

Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras. 

Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.