Minha primeira análise da Reforma do Ensino Médio foi na direção dos tais itinerários propostos pela nova lei. Cinco possibilidades, zero de infraestrutura para a oferta de qualquer delas, mesmo do itinerário das humanidades, com as inexistentes bibliotecas escolares. Para “as linguagens e suas tecnologias” seriam necessários laboratórios de informática e conexão com a rede, o que, quando há, é precário. Assim, restaria às escolas públicas os famosos acordos permitidos, de modo que a parte diversificada dos tais itinerários pudesse ser feita na forma de estágios nas empresas. Ponto. Estava garantida uma mão de obra barata para qualquer empresa que quisesse colocar estudantes dentro de seus “quadros”: todos sairiam com o itinerário de “formação técnica” e as empresas a cada ano receberiam uma leva de estudantes, garantida pois a reposição das peças do trabalho gratuito com o nome de “formação”.
Como este projeto pode parecer pouco, já noticiam que o programa Bolsa Família terá mudanças radicais: as mães deverão prestar serviço voluntário nas cidades e no campo. Nas cidades provavelmente assumirão a limpeza das ruas, a coleta do lixo, o cuidado dos jardins e praças etc. Nos distritos e no campo, como há poucas possibilidades, deveriam fazer trabalho voluntário nos clubes, nas escolas, nas associações por acaso existentes… na falta destas, servirá o trabalho voluntário de manutenção das estradas municipais à base da enxada e da pá. E as crianças, filhos e filhas das “voluntárias” deverão fazer estágios no contra turno escolar!!! Ou seja, como a portaria do trabalho escravo foi barrada no STF, o trabalho escravo volta noutra forma: para crianças, como estágio obrigatório para que a mãe receba a ajuda do Estado; para os jovens, como “formação técnica”.
Mas tudo isso estava sem a cereja do bolo. Agora ela veio, vermelha e apetitosa. 40% da carga didática de qualquer disciplina – mesmo aquelas que demandariam o uso de laboratórios, como a Química – podem ser ministradas à distância. Embora o número de navegadores na internet tenha aumentado vertiginosamente, há uma diferença enorme entre receber e mandar uma curta mensagem e assistir uma exposição, uma explicação de 40 ou 50 minutos! Quem fará isso num celular? E como não há computadores em todas as famílias, qual a solução para esta “educação à distância”?
Ora, já sabemos: o telecurso voltará com toda velocidade. Os canais de TV aberta açambarcarão um público cativo, e obviamente os recursos para oferecerem a carga didática prevista. Como 60% ainda continua presencial – por pouco tempo dado que as estatísticas mostrarão o sucesso do empreendimento à distância – provavelmente professores em sala de aula terão que recuperar as “aulas do faz de conta” não assistida pelos alunos! Isto que é política para a juventude!
Como os 60% ainda demandarão a existência de escolas, de professores, logo deveremos ter um aumento deste percentual. Aliás, é estranho que já não comece com 50%! Acho que o Henrique Meirelles não foi consultado! Porque se fosse 50% de carga didática à distância, uma mesma escola física atual poderia se tornar duas. 50% do tempo ocupado por uma escola; 50% do tempo ocupado por outra escola! De cada estrutura física de duas escolas, uma ficaria livre e disponível para a venda…
Quando o Henrique Meirelles e o mercado descobrirem esta mina de enriquecimento, com a venda de “ativos” dos estados e municípios, o percentual de carga didática à distância vai aumentar. O número de professores também pode reduzir pela metade!!! Já pensaram nisso? Esta seria uma saída para que a PEC do fim do mundo, com os 20 anos sem aumento nas “despesas com educação” se tornasse efetiva com facilidade.
Depois da experiência bem sucedida – como foi o telecurso 2º. Grau (sorriam, por favor) – o governo poderá ampliar tudo isso para o fundamental e, talvez, para a educação infantil. Nesta, seria legalizada e paga a babá eletrônica. Afinal, para o ensino fundamental, o governo já tentou a oferta do ensino à distância, mas depois de críticas, recuou.
Mas o sucesso da empreitada agora iniciada vai dar sustentabilidade científica à expansão. E não faltarão núcleos e centros de pesquisa universitários, regiamente premiados com verbas, para apresentar os sucessos do ensino à distância em todos os níveis.
O brabo será quando isso chegar ao curso de Medicina, dispensando os alunos de qualquer contato físico com hospitais e com pacientes… Mas este horror ficará para o futuro, afinal, saúde é um bem, e somente pode ter um bem quem pode pagar, como defende a direita norte-americana em seus chás das cinco.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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