O diário roubado, de Régine Deforges

Deforges foi uma mulher de grande atividade no ambiente francês: além de romancistas, ela foi a primeira mulher a dirigir sua própria editora. Neste romance, iniciado em 1974 e finalizado em 1978, segundo as datas que a autora coloca no fim do volume, ela enfrenta a questão do preconceito social às sexualidades diferenciadas.

Suas personagens, Léone e Mélie, podem ser as protagonistas do enredo, mas a personagem principal, efetiva, é o preconceito violento, tal como eclode numa pequena cidade do interior.

Léone é filha de uma família de classe média baixa, vive na cidade e estuda no colégio das freiras. Adolescente de quinze anos, mantém uma relação com sua colega Mélie, cuja casa frequenta. Esta, no entanto, é filha de família bem situada na cidade, com nome e mais dinheiro. Este aspecto, que fica subentendido ao longo do enredo, no entanto será uma marca, porque somente sobre Léone cairá a fúria das beatas e do machismo dos jovens da cidade.

Como grande número de adolescentes, Léone escreve um diário. São cadernos de capa dura, que vai preenchendo com suas impressões, suas reflexões, sua dúvidas, suas angústias e também com as informações e fuxicos do que acontece na cidade. Tem certeza que seu “diário” está seguro e que ninguém o lerá. Mantém-nos numa caixa fechada à chave, e guarda esta num vaso de flores artificiais, crente que ninguém a descobrirá.

Nas férias de verão, num baile, Alain, o estudante de fora, já com 19 anos, vem passar as férias. E num destes bailes típicos do interior, ele arrasta Léone para dançar e diz para uma estupefata adolescente:

– Você resiste inutilmente. Você gosta da mão dos homens e não a das garotas. Tudo em você at4rai o macho e você sabe disso. Jean-Claude e seus coleguinhas sõa muito tolos e muito jovens para compreendê-la. Você foi feita para trepar assim como outros foram feitos para ser acrobatas, paraquedistas, mães de família, párocos ou boas moças, mas você é feita para gozar como uma boa putinha que é. Não percebeu que estou de pau duro, sua galinhazinha?

Está dado o mistério: como Alain, recém chegado, faz referência a “mãos de garotas”? Que lhe contou Jean-Claude de um dos encontros a dois, em que as mãos do menino a levaram ao êxtase?

Irritada com a ofensa, Léone volta para casa e vai direto a seus cadernos: estão todos lá. Nele os registros de seu desejo de realização sexual com algum homem que fosse digno, que soubesse como fazer… Assim, o diário é ao mesmo tempo do registro do que vive e do que sonha viver um dia. E na fala de Alain ela detecta algo…

Mais tarde descobrirá: sua irmã mais nova, Catherine, havia descoberto o segredo, lera os cadernos e emprestará um deles para outro adolescente: Yves. O caso entre Léone e Mélie se torna público e elas se deixam ver namorando, se beijando, assumindo a relação.

E um dos cadernos de Léone desaparece definitivamente: sua recuperação será o enredo de toda a história. Alain está com ele; mostra-o ao Abade C., que faz queixa na polícia por atentado ao pudor. Está desencadeado o processo da violência do preconceito. Serão inúmeros os episódios de violência, de ataque, de xingamentos por que passará Léone (mas não Mélie!).

Ao longo da narrativa de cada saída, de cada passeio de sua heroína, dos encontros do seu pequeno grupo de amigos adolescentes, tudo ficará marcado a partir daí pelo fato de Alain ter o diário roubado… Ele marca até uma leitura do diário num bar da cidade, com hora marcada e todos os requintes da crueldade. Léone vai ao bar, tenta recuperar o diário e recebe socos, pontapés e xingamentos… Yves a encontrará mais tarde jogada numa valeta da cidade.

Os pais de Léone, no entanto, nada fazem, não esboçam nenhuma reação. Ao contrário, o pai viaja para trabalhar no exterior e a mãe ali permanece para enfrentar o escândalo de uma filha lésbica. (Ninguém chamará Mélie de lésbica, de puta, de vagabunda…).

Depois de muitas peripécias, recusas, surras, a mãe de Léone consegue um acordo com a mãe de Alain e com ele próprio: viriam até a casa de Léone e entregariam o diário desde que ela prometesse jamais se encontrar com Mélie e queimasse todos os outros cadernos.

Somente então Léone se submete – e morre por dentro. Logo após, o pai que estava trabalhando na África, reúne por lá a família… E o final da história é Léone, a mãe, a irmã maligna e o irmãozinho no avião indo embora da pequena cidade do interior francês.

O enredo pode não ser relevante – embora a gente leia o livro de um só fôlego levado por esta história de violência. Mas o preconceito e suas formas de emergência, o machismo cultural e a vida interiorana onde tudo se faz e tudo se esconde, mas todos tudo sabem.

Tratar do tema não é algo fácil: lesbianismo x preconceitos. As reações do entorno, os sofrimentos de Léone, a solidão a que é conduzida levam qualquer leitor/leitora a pensar duas vezes em assumir seus desejos.

No entanto, a revolta que produzem no leitor os atos preconceituosos amena esta possibilidade. Mesclando a revolta do leitor às reflexões de uma jovem adolescente e curiosa e inteligente, fazem deste pequeno volume um romance que vale a pena ler.

Referência. Régine Deforges. O diário roubado. Tradução de Jaim Rodrigues. 2ª. ed. Rio de Janeiro : Record, 1998.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.