É divertido ler hoje um livro de 1641. Perdem-se as referências mais ou menos diretas às personagens históricas das críticas irônicas e mordazes. Perdendo o particular, ganha-se na compreensão do que permanece como fundamento constitutivo das relações sociais nesta estrutura que então se conformava: se ultrapassamos no tempo histórico a “nobreza”, continuamos com a aristocracia cujo “sangue” parece se transmitir por hereditariedade como os títulos de nobreza dos séculos modernos que já se foram.
Seguindo a tradição de Dante, em que Virgílio conduz o poeta em sua descida aos Infernos, aqui a personagem “Dom Cleofas Leandro Pérez Zambullo, fidalgo aos quatro ventos, cavalheiro furacão e encruzilhada de sobrenomes, galã dos noviciados e estudante de profissão”, fugindo da polícia que o caçava por ter supostamente desonrado Dona Tomasa, entra no escritório de um astrólogo onde encontra o Diabo Coxo preso numa redoma. A seu pedido, solta-o e a aventura começa.
Serão nove “trancos” (em vez de capítulos, já que o Diabo Coxo anda aos trancos e o deslocamento também é aos trancos). Em cada tranco um espaço geográfico diferente é desvendado
– Dom Cleofas, desde esta picota das nuvens, que o lugar mais alto de Madri (mal ano para Menipo nos diálogos de Luciano), vou te mostrar tudo de mais notável que acontece neste horário nesta Babilônia espanhola.
E uma Madri que dorme é mostrada, com os mais diferentes personagens – em geral simplórios. Há barbeiros que aplicam ventosas; há uma parturiente e seu marido ansioso; há ladrões que arrombam o cofre de um estrangeiro rico e assim por diante.
Mas já o dia não nos deixa seguir adiante, e já vem o sol fazendo cócegas nas estrelas que estão brincando no céu, e dourando a pílula do mundo, tocando a arma a tantas bolsas, e contradizendo tantas panelas, frigideiras e tigelas; não quero que se valha de minha habilidade para ver os segredos que a noite lhe negou; que lhe custe bisbilhotar por fendas, claraboias e chaminés.
No tronco seguinte, aparecem os nobres que vão à Rua dos Gestos, com espelhos de ambos os lados, onde treinam os gestos que repetirão na Corte. Seguem caminho e entram na casa dos loucos, e vão encontrando os mais esdrúxulos motivos de loucura: um arbitrista que escreve sem parar para que reduzam os quartos; um gramático enlouquecido em busca do gerúndio de um verbo grego; um historiador que perdeu três décadas de Tito Lívio… e vão se embora porque “podem nos pegar por alguma loucura que ignoramos; porque no mundo todos somos loucos”.
O astrólogo de quem fugira o Diabo Coxo recama com Satanás que lhe fornece outro demônio, mas também determina que o Cem-chamas, ajudado por Chispa e Redina, corram mundo para prender o Coxo, razão por que fogem para Toledo. Neste tranco Cleofas descansa à noite enquanto o Diabo vai a Constantinopla e depois aos Cantões suíços… No entanto, a noite é interrompida por um hóspede poeta que grita “Fogo!” e a todos acorda. Na verdade o poeta grita seus versos, porque as “consoantes lhe subiram à cabeça”. Neste tranco aparecerão inúmeras referências literárias a mitos da antiguidade e a título de comédias de época.
No dia seguinte, reencontram-se os guia e seu guiado. Conta o Diabo Coxo sua viagem da noite, e fogem pela janela da hospedaria rumo a Sevilha. No caminho encontram uma “trupe” de atores. Como em muitas comédias representavam o diabo, resolveu o Coxo dar-lhes uma lição: na distribuição dos papeis de uma comédia desentendem-se e começa o reboliço. O Diabo Coxo e Cleofas os deixam embolados e seguem viagem.
Chegam a Córdoba, “entrando pelo Campo da Verdade (poucas vezes pisado por gente desta laia) para a Colônia, populosa pátria dos Sênecas e um Lucano, e do pai da Poesia espanhola, o celebrado Gôngora, no dia que se celebravam festas de touros, e outras festividades; chegaram e tomaram pousada na taverna das Rejas, que estava cheia de forasteiros”. Depois passam por Ecija [em verdade a terra natal do autor] e chega a vez das críticas às beatas, “porque não há no mundo quem não as queira mal, e nós temos grandes obrigações com elas, porque nos ajudam com nossas mentiras; são diabas fêmeas”.
Será em Sevilha que verão as “maravilhas” dos comportamentos humanos mostrados a Cleofas pelo Diabo Coxo. Iniciam com um cortejo de Fortuna, e o diabo lhe vai chamando atenção aos primeiros lacaios da Fortuna que passam a pé: os maiores engenhos que já teve o mundo – Homero, Píndaro, Anacreonte, Catulo, Dante, Camões, apenas para citar alguns dos nomes elencados. E segue-se um diálogo pitoresco:
– Certamente cresceram pouco – disse o estudante – pois não passaram de lacaios da Fortuna.
– Não há em casa sua – disse o Coxo – quem tenha o que merece.
Como o cortejo continua, aparecem então as damas de companhia: a Necessidade; a Mudança; a Lisonja; a Beleza (uma dama muito nobre e muito esquecida de sua ama); a Inveja, a Ambição (que está hidrópica de desejos e de Imaginações); a Avareza. Depois seguem as donas da Fortuna: a Usura, a Simonia, a Fraude, a Fofoca, a Soberba e a Invenção…
No tranco seguinte, descansados os dois até às duas da tarde, sobem ao terraço a que também comparece a mulher do hospedeiro. Usando o espelho que esta trouxera, o Diabo Coxo mostrará aos dois o que está acontecendo na Rua Maior, de Madri onde desfila a nobreza. Este é talvez o mais cômico dos “trancos” porque os títulos pomposos dos nobres aparecem em todo seu ridículo e tradição.
Os dois trancos seguintes serão destinados aos “acadêmicos das letras”: ambos entram em uma reunião de acadêmicos, e são bem recebidos como estrangeiros que são. Declamam seus sonetos, e muito aplaudidos, passam a fazer parte da academia, em que cada um terá um nome que lhe siga ao nome próprio. E escolhem: O diabo Coxo será o Enganador; Cleofas o Enganado. E torna-se este o presidente da Academia.
Na reunião seguinte, presidida pelo Enganado, este traz para a academia um “decreto”, com “premissas e ordenanças” dentre as quais saliento:
Inicialmente, manda-se que todos escrevam em espanhol sem introduzir outras línguas, e que quem diga fulgor, libar, nume, purpurar, meta, trâmite, afetar, pompa, trêmula, âmago, idílio, e outras iguais a essas e introduzir posposições desatinadas, fique privado de ser poeta por duas Academias, e na segunda vez, sejam confiscadas suas sílabas e consoantes, como traidores a sua língua materna. [para que melhor crítica ao estilo embolado das Academias?]
[…]
Chegou até nós a notícia de que há uma linhagem de poetas e poetisas para palacianos que levam uma vida mais estreita que os monges de Paular, porque com oito ou dez vocábulos somente, que são crédito, descrédito, recato, desperdício, desvalido, baixa fortuna, estar falido, espraiar-se querem expressar todos os conceitos e deixar para Deus somente que os acenda; mandamos que lhes deem outros cinquenta vocábulos mais de ajuda de custo, do tesouro da Academia, para se valerem deles, para que, se não o fizerem, caiam na na pena de minguados e de não ser entendidos, como se falassem basco. [para que melhor definição dos economistas neoliberais que tudo reduzem a poucos termos, mas que os explicam de forma embolada]
Deixo de lado que Dona Tomasa, abandonada por Cleofas, arruma outro amante (de quem Cleofas terá ciúmes, mas o Coxo o consola dizendo que isso passa) e passa por Sevilha, donde foge para as Índias com o amante…
E a história se encerra com o Coxo voltando para os infernos, Cleofas retornando a seus estudos em Alcalá depois de saber da prisão de seu Diabinho, decepcionado porque até os diabos têm seus delegados e os delegados têm os diabos.
E segue-se a surpreendente ironia aos trâmites das censuras e autorizações de publicação, com “Laus Deo et Beatae Virgini Mariae, Sub correctione Sanctae Matris Ecclesiae Ramanae”.
Referência: Guevara. O Diabo Coxo. Tradução de Liliana Raquel Chwat. São Paulo : Escala, 2006.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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