Já vou adiantando: o ministro que comeram foi Delfim Neto, memorável enunciador da regra maior do capitalismo canibal: “é preciso fazer o bolo crescer para depois reparti-lo”. Como o tamanho do bolo nunca foi definido e como a ganância do capital não tem limites, jamais se cogitou na divisão. E a miséria e fome se alastraram sob o império da repressão, desde então em benefício do “desenvolvimento”. E o banquete começou
O negócio foi mais ou menos o seguinte: Delfim neto retornava de uma de suas viagens a Londres onde la´me de interpretar “Strangers in the Night” e “My Way” num cabaret do Soho, fora tentar arrancar mais grana {…}
E nesta crônica, onde ficção e realidade se encontram, o ministro respondia a perguntas da imprensa, sempre batendo na mesma tecla: a paciência para esperar o bolo crescer… então um câmara-man da TV Tupi vendo a mão gordinha gesticulando não resistiu: deu-lhe uma mordida e o sangue jorrou. E daí por diante, o canibalismo, o canibalismo, embora não reconhecido oficialmente pelo governo, generalizou-se.
Esta remessa à crônica que dá título à coletânea – são 50 crônicas originalmente publicados no Pasquim – mostra que o jornalista, e professor universitário quando do exílio na Itália e Dinamarca, sempre soube reunir a remessa à realidade, papel do jornalismo, e a elaboração literária de suas crônicas carregadas de ironia e perguntas. Muitas delas são memórias trabalhadas, particularmente aquelas que remetem à vida pessoal, que envolve exílio, falta de dinheiro, amor e sexo.
Leitor do Pasquim nos idos tempos, retornar a estas crônicas – algumas eu não tinha lido – é voltar ao passado e compreender o presente. Fausto Wolff é arguto, e trata de tudo um pouco, mas o pano de fundo é sempre o mesmo – uma opção por um mundo mais justo, sem submeter-se a ditames de uma visão específica, fechada em si mesma. Seus escritos, à época, somente poderiam ter guarida no Pasquim, de que o autor foi um dos editores.
Crônicas semanais, dirigidas aos leitores, desvelam um tempo e o modo de vida de jornalistas e intelectuais durante a ditadura. Fausto foi um destes grandes intelectuais de mesa cativa em bares, convivendo com outros tantos. Mas um intelectual que ia à praia… [para os mais novos, havia um lema então: intelectual não vai à praia, bebe, algo somente concebível no meio carioca]. Aliás, não faltam crônicas contando borres homéricos, ou contando o fazer crônica enquanto a fazia, neste jogo de comentar o que se produz enquanto se produz. Há também crônicas ao estilo de “diário”, uma delas inclusive datando o acontecido no dia, ainda que o registro seja posterior. Neste sentido, o material aqui reunido pode ser ponto de partida para um estudo da vida cotidiana de nossos escritores durante a ditadura. Um ponto de partida que, reunindo outros cronistas e a produção de outros intelectuais da época, permitirá recuperar a “sobrevivência” num regime de repressão, particularmente quando, hoje, nos aproximamos de outra etapa da repressão, uma constante na nossa história porque a classe dominante brasileira, além de submissa aos interesses do capital externo, tem uma característica permanente: odiar o povo brasileiro, sentir vergonha de ser brasileira e por isso orar para que as multinacionais e o irmão do Norte tomem conta do que aqui há.
De uma crônica em particular – O baixinho e eu – em que o autor inventa uma personagem extraterrestre cujo disco voador ancorou em seu olho esquerdo. Retirou-o de lá, pôs na palma da mão, e começaram a conversar. O baixinho já voltava para seu planeta irritado porque não havia compreendido os homens de cá. E aí aparecem 17 perguntas que o baixinho dirigiu ao narrador que não ele não soube responder (na contagem, o autor pula o número 7 e todos podemos imaginar a remessa à cabala ou algo semelhante). A atualidade das perguntas me leva a transcrevê-las como uma amostra deste estilo de fazer jornalismo e ao mesmo tempo literatura, em que Fausto Wolff é mestre:
- Por que gastamos tanto dinheiro em bronzeadores, banhos de sol artificial, ficamos horas e horas na praia para ficarmos pretos e mulatos se os pretos e mulatos são considerados inferiores e sofrem grandes desvantagens econômicas e sociais?
- Por que é que vocês mobilizam milhares de pessoas para fazerem as leis que regulam a conduta de vocês e depois empregam especialistas chamados advogados para romperem estas mesmas leis?
- Se a vida que os religiosos em geral dizem existir depois da morte é tão boa a ponto de ser classificada como céu ou paraíso, por que os suicidas são considerados pessoas anormais e os homens que matam outros homens para manda-los para a vida eterna são considerados criminosos?
- Por que é que vocês só comem animais com cornos como vacas e cabritos e não comem animais sem cornos como cavalos e burros?
- Por que matar vestindo um uniforme (e aparentemente sem lucro pessoal algum) é considerado um ato heroico enquanto que matar em trajes civis é um crime?
- Por que uma mulher mais velha que sai para jantar abraçada a um homem mais jovem é considerada ridícula quando um homem mais velho aos beijos com uma garotinha é visto com admiração por todos?
8) Por que vocês são tão imbecis a ponto de acreditarem num político candidato a deputado ou a senador que gasta na sua campanha mais do que receberá de salários durante todo o seu mandato?
9) Por que é que o álcool e o cigarro não são só tolerados como têm seu consumo estimulado pela propaganda, apesar dos terríveis efeitos sobre a saúde, e a maconha, a cocaína, o ópio entre outras drogas são proibidas?
10) Por que os homens ricos se irritam tanto quando suas filhas perdem a virgindade e entretanto pagam verdadeiras fortunas para acabar com a virgindade das filhas dos pobres?
11) Por que as mulheres da classe média para cima quanto menos trabalho fazem mais recompensas têm, enquanto que as mulheres pobres quanto mais trabalham mais sofrem?
12) Por que a prostituição é considerada uma praga social, enquanto a sua clientela é vista com naturalidade?
13) Se só existem dois sexos, que diabo de sexo é aquele que vi no baile do Canecão?
14) Se o homem é a obra-prima da natureza, por que cachorros recebem tratamento mais humano que operários e empregadas domésticas?
15) Por que homens que decidem declarar guerra contra um outro país nunca estão no campo de batalha, preferindo deixar este trabalha pra gente que nunca pensou em declarar guerra a ninguém?
16) Por que é que o ouro é tão valioso se, de todos os metais, é o que tem menor utilidade?
17) Se homens e mulheres adoram se ver pelados, por que é que se vestem?
18) Por que é que o homem é capaz de façanhas mais ridículas para ir para a cama com a mulher do próximo mas quando o próximo é ele mesmo se transforma num assassino?
Levando a sério a ironia e o riso, porque eles dizem o que o sisudez não diz – que passe o paradoxo do “levar a sério” – e retirando um pouco do preconceito da pergunta 13, e não por acaso, número 13 que antes do PT era tido como o número do azar – estas perguntas continuam sem respostas e são um bom prato de reflexão com que brindava seus leitores, com ironia e riso, tudo o que se publicou no Pasquim [para os mais jovens, uma dica: já está no terceiro volume a coleção Pasquim. Antologia onde muito do que lá se disse por ser recuperado, incluindo os cartoons].
Por fim, Fausto Wolff é pseudônimo. Também, com o nome de batismo Faustin von Wolffenbüttel, o santo-angelense nascido em 1940, que migrou logo para Porto Alegre (as 14 anos já trabalhava no jornal Diário de Porto Alegre), não teria encontrado o sucesso de Fausto Wolff. O nome de batismo é quase impronunciável para brasileiros…
Referência. Fausto Wolff. O dia em que comeram o ministro. Rio de Janeiro : Codecri. 2ª. ed, 1984.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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