O destino da carne, de Assis Brasil

Excelente! Robusto no enredo, no símbolo e na técnica narrativa. O romance se compõe de cinco capítulos, cada um deles tendo por título o nome da personagem que assume o ponto de vista da narrativa, falando de si mas, sobretudo, da relação com “o segredo” da personagem principal, Celina, que abre o romance e o encerra. Não por acaso ela abre e ela fecha a narrativa: acontece que são suas relações com o pai (Orlandão), com a mãe (Carmen) e com o irmão (Orlandinho) que estão em jogo, ao mesmo tempo que nestes capítulos, ao assumirem o ponto de vista da narrativa, as personagens falam também de si.

O tempo é de quinze anos: Celina está com trinta anos quando começa a contar no presente o seu passado, e refletindo no presente traz suas preocupações com o mundo e com a sociedade. O fato que fundamental, que será desenrolado aos poucos, como se fosse um novelo, aconteceu há quinze anos. Mas não se escreve como se fosse uma rememoração, antes pelo contrário. Este passado está ali, presente, mas o hoje das reflexões e das relações com o pintor Artur, um artista defensor de uma filosofia da marginalidade, que “ilumina” o passado e aponta para uma saída possível, ou um refúgio, a arte como escapatória de um mundo em decadência moral e sob forte aparato repressivo: o tempo histórico é aquele da ditadura militar no Brasil.

Pode-se simplificar o enredo: trata-se de uma jovem que aos quinze anos mantém uma relação com a empregada da casa, Marieta. E mesmo virgem, fica grávida. Marieta não era travesti. Mas mantinha relações com seu namorado, Neco. E depois das andanças noturnas com o namorado, vai ao quarto de Celina com quem mantém relações. A explicação “objetiva” da gravidez seria o fato de que Marieta, carregando os espermatozoides do namorado, transfere-os para Celina. Está dado o drama: uma jovem de uma família burguesa preocupada sobretudo com o “status” social aparece grávida. Primeiro, como compreender esta gravidez de uma virgem? Segundo, o que fazer com a gravidez. Obviamente a solução do aborto, mas no momento de realiza-lo Celina se revolta e não deixa que o pratiquem. Tem um filho, que se chamará com o nome do poeta nacionalista irlandês: William Butler Yeats. O negrinho Willi, que a família diz ser da empregada e que adotaram, embora o excluam do convívio: ele será aluno interno durante todo o tempo. Este o segredo de Celina: ter um filho resultado de uma relação homoafetiva! De uma paixão avassaladora.

Mas isto não é contado assim, em linha reta: o leitor vai tomando conhecimento aos poucos, como se estive desenrolando um novelo. E será sempre nos diálogos de Celina com seu namorado atual, o pintor Artur que esta história vai emergindo.

Pelo meio do caminho, os capítulos de cada um dos membros desta família burguesa: Carmen, a mãe, acaba tomando a filha como confidente e lhe narra suas aventuras, sempre conduzidas por sua amiga Vivi: não há que desperdiçar a vida e o viço da vida no cotidiano sem sal: é preciso aventuras. Então Carmen se torna uma “prostituta” eventual e de luxo, frequentando uma casa mantida pela senhora Cleveland para clientes especiais. Há na casa as prostitutas profissionais, mas há estas que “amam o sexo e a aventura”, que tem horário marcado com clientes especiais. E que recebem por seus serviços… Neste capítulo, em que a voz que narra é Carmen, as reflexões são sobre este desejo incômodo e eterno do “aproveitar a vida curta e passageira” sem, no entanto, ferir a moral burguesa: o destino do desejo, esconder-se para realizar-se. A mãe com muita frequência aponta para Celina esta vida possível, escondida, mas de prazeres que ela está deixando passar, ficando sempre em casa, reclusa.

Orlandinho é o típico jovem pequeno burguês, que aposta corridas, que participa de festas, de vai a embalos, que experimenta drogas. Está sempre ocupado. Sempre saindo. A casa dos grandes encontros é do amigo Horácio, um travesti com dinheiro. Tem uma namorada: Jacira. Numa destas festas de embalo, só para homens, mantém relações sexuais com um parceiro, pensa que descobriu o que de fato queria na vida. Mas na festa seguinte, leva Jacira como um teste para sua namorada: todo mundo nu, todo mundo transando sem qualquer vergonha. Livres e libertinos. Orlandinho transa com Jacira, depois sem que esta o compreenda, diz a ela que o salvou! E lhe propõe casamento… Orlandinho é também sarcástico com a irmã: todos na família sabem o segredo de que não se fala e que não pode ser espalhado para fora do ambiente familiar. Há constantes troca de farpas entre os irmãos, inclusive Celina com frequência se refere à relação homossexual de seu irmão.

Orlandão, o pai, é o típico burguês bem sucedido. Que constituiu uma família, que a sustentou e que mantém um padrão social invejado por outros que, numa sociedade de “sucessos”, estão sempre aspirando subir, sem jamais deixarem de ser o que de fato são: uma classe média mais ou menos endinheirada. Orlandão tem um escritório. E seu passatempo é jogar cartas – pif paf – na casa do amigo Osias, outro bem sucedido que vem do cais do porto e se torna grande investidor na bolsa. Na verdade, o que interessa a Orlandão é a mulher de Osias, Fernanda, que durante o jogo o provoca sob a mesa, com o pé em suas coxas… Orlando resume sua vida:

Ainda passara pelos tempos românticos, mas achava que escapara um tanto incólume para não viver mergulhado em ilusões – sabia e podia sentir que os navios não eram mais de velas pandas ao vendo, que as velas igrejas de outro haviam desaparecido sob a sombra dos arranha-céus de aço, que os homens, generalizados, empenhavam mais o valor do dinheiro do que o da honra.

Este pai burguês, que exige um encontro diário da família, jantando sempre todos juntos, sai depois da janta para a casa do Osias, para jogar e ver Fernanda – seus dois passatempos. Demora a acontecer o encontro sexual prenunciado. E da primeira vez no escritório de Orlando… para depois se tornar mais frequente e em lugares mais cômodos.

A história somente se completa no último capítulo, quando Celina já decidira que queria ir viver com Artur e por isso conta-lhe todo seu passado, sua paixão por Marieta, o filho Willi. E propõe viverem juntos, terem juntos um filho, que seria o irmão de Willi que, enfim, sairia de seu eterno internato para viver com a mãe.

Esta linearidade é totalmente desfeita na técnica narrativa. O escritor introduz aqui diferentes pontos de vista: cada capítulo tem por narrador a própria personagem, ela fala, a voz é sua. E ao mesmo tempo e esporadicamente aparece um narrador em terceira pessoa, onisciente que emerge e submerge quase imediatamente, confundindo sua voz com a voz das suas personagens, consciências equipolentes, como diria Bakhtin. Neste sentido, trata-se de um “romance polifônico” em que vozes independentes se narram e falam sub-repticiamente o tempo todo sobre “o segredo de Celina”, mas como signo bissêmico, como aponta Gilberto Mendonça Teles, num texto de crítica literária (“A visão entre parênteses”, com que se encerra esta primeira edição do romance) remeteria à realidade brasileira:

As datas de trinta e quinze anos, que estruturam o tempo desses capítulos, funcionam como um parêntese, a partir do qual se chega a um parêntese ideológico: os anos difíceis de 1964-1965 e a esboçada abertura política de 1980. E ai que a ideia de signo bissêmico atinge a sua plenitude de símbolo, abrindo-se francamente para o imaginário e criando a possibilidade de todo esse jogo de parênteses estar, no fundo, apontando para a revolução de 64. O filho espúrio, concebido de forma contrária à normalidade, não poderia ser o símbolo de uma anormalidade política instaurada no país? A família burguesa, em decadência moral, não teria alguma coisa a ver com a família brasileira, politicamente perturbada pelos anos que antecederam e pelos que se seguiram à revolução. A técnica dos parênteses e barras não estaria, no íntimo, relacionada ao problema da censura? E a única saída possível para Celina no romance não é também o símbolo, espelho e modelo, da única saída possível para o escritor neste período: o de sublimar-se pela arte?

Uma curta passagem do diálogo entre Celina e seu namorado Artur ilustra esta saída:

Artur lhe falara nisso uma vez, mais uma vez: só os artistas podem sentir e aceitar a finitude e ao mesmo tempo a liberdade sem fim, o que faz com que eles escrevam, pintem, sonhem, amem a beleza das coisas efêmeras.

– Será mesmo, Artur?

– Só os artistas autênticos e as pessoas sensíveis.

– Eles não temem a morte?

– Temem como qualquer um, mas a aceitam como mais um desafio da criação.

 Independentemente deste aspecto simbólico menos visível para o leitor contemporâneo (note-se o cuidado do crítico em referir “a revolução de 64”, num texto publicado em 1982), vale a pena destacar o aspecto técnica da composição. Assis Brasil (Francisco de Assis Almeida Brasil) parece aceitar a tese de Bakhtin de que o romance é o único gênero ainda em construção, ainda inacabado, e inventa uma forma narrativa polifônica na forma de mudança contínua do ponto de vista, da voz que fala, da voz que narra e da voz que traz ao texto reflexões sobre o estar no mundo.

O autor faz uso frequente de parênteses, de barras. Estas parecem marcar os versos, porque há inúmeras citações, alusões, discurso direto e discurso indireto livre ao longo do romance: aparecem Machado de Assis, Jorge de Lima, Poe, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa… Daí as barras, os parênteses.

Outro aspecto bastante explorado é a “interpolação” de enunciados, em que os diálogos entre dois personagens são atravessados por diálogos com outros personagens, como no exemplo abaixo, passagem extraída da cena em que Celina está contando a Artur a sua história (último capítulo), em que se explora a técnica do discurso direto:

Ingenuidade, sei. Só mais tarde, muito mais tarde, eu compreenderia que é preciso um freio para todos os nossos atos: o ser livre é um condenado, eu concordo. Lançado ao mundo, sem se ter criado a si próprio, é responsável por tudo quanto fizer.

– Não me diga, Celina, que filosofou naqueles momentos.

Não. Não podia. Mas foi dali em diante, acho, que comecei a pensar. Muito depois da fase Marieta, ou no ato mesmo da revolta contra a trama para assassinarem meu filho. Não sou apenas uma coisa que sente, disse pra mim mesma. Sou uma coisa que sente e que pensa e que tem dúvidas

Foi bom, queridinha? – Marieta me perguntou, a chama se afastando num bruxulear de espanto.

– Foi bom, queridinha?

Não disse nada.

Esta técnica lembra outro livro, anterior: Conversas na Catedral, de Mário Vargas Llosa (publicado no Brasil em 1969).

O interessante é que o leitor, já embalado pelo enredo e seguindo o balanço da técnica narrativa, nunca tem dificuldades de saber quem fala quando um diálogo é entrecortado por outro diálogo. No exemplo, isso é evidente. Mas em outras passagens, quem não leu o livro pode ficar perdido em falas que parecem incoerentes ou desconexas. Escolhi aqui um exemplo claro de entrada em discurso direto de outro diálogo no interior da narrativa que Celina fazia para Artur.

Outro aspecto da técnica narrativa que merece relevo é o longo desenrolar do “segredo de Celina”. A memória de leitor me levou diretamente ao livro de Renato Tapajós, Em câmara Lenta (1977). Também aqui a cena de tortura se prolonga e vai sendo contada a conta-gotas, como o segredo de Celina vai aparecendo e somente no último capítulo o leitor toma conhecimento dos fatos, narrados pela voz da protagonista para seu namorado.

Enfim, trata-se de um romance tecnicamente muito bem construído, com uma história que deixa o leitor em atenção contínua, numa linguagem que prende o leitor que, ao mesmo tempo, o angustia pelas inúmeras perguntas que são levantadas pelas personagens, particularmente o pinto Artur e a personagem central, Celina.

Um romance polifônico, sem dúvida. Um romance que vai fundo na alma de suas personagens que se apresentam como independentes do autor, como seus outros.

Para aqueles que estudam o trabalho desenvolvido por Bakhtin, este livro pode ser um bom lugar para encontrar em nossa literatura, e contemporânea, o que o pensador russo encontrou em Dostoiévski, guardadas as proporções, é claro.

Referência. Assis Brasil. O destino da carne. Rio de Janeiro : Nórdica, 1982.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.