O CARNAVAL ACABOU, A ALEGRIA TERMINOU, E AGORA?

“Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?” Assim cantavam os sambistas no desfile da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, na Arena do Sambódromo do Rio, na segunda-feira, dia 12 de fevereiro de 2018. Enredo feito arma forte, instigante, surpreendente. Acontece que no Brasil inteiro, o carnaval é lindo, é alegria, é festa, é dança, é canto, é riso geral ridente, é arte, é estético erótico corporal, é fantasia, é alegria colorida e brilhante, é amor, é sexo, é ironia, é… porém, e quem vai responder a pergunta do enredo da Paraíso do Tuiuti?  Está extinta mesmo a escravidão no Brasil? Vamos, responda “vampiro neoliberalista”. Você com a faixa horrorosa de “Presidente”, por que indevida, indecorosa. Você, Temer, pintado alegoricamente de “vampirão” e todos os seus amigos comparsas a quem você serve tão “inocentemente”, como você diz, faz agrados e enriquece com o dinheiro de todos e às custas de muito sofrimento dos trabalhadores mais pobres, ainda escravos, por conta e força das leis, das medidas que você impõe ao povo brasileiro, você consegue dormir em paz? Ah, eu estava me esquecendo, você não tem mais tristeza ao fazer sofrer os milhões de brasileiros com seus atos de injustiça social.

Bem, se por um lado fico triste e indignado com as políticas neoliberalistas privativistas de hoje, por outro lado fico alentado e orgulhoso com os protestos impiedosos nos desfiles das escolas nos sambódromos e principalmente nos blocos das multidões de sambistas nas avenidas, nas praças, nas ruas, nas praias pelo Brasil inteiro. É o carnaval voltando às suas origens. Isso nos faz lembrar o profundo sentido da história do samba e do Carnaval no Brasil. Aqui, o nascimento e  o berço do samba e do carnaval tem sido as senzalas, os quilombos, as praças com pelourinhos, as favelas e os logradouros, espaços de lutas, de guerras contra a escravidão, cujas armas não eram as espadas, nem os fuzis, mas o samba, a dança, o canto, o tambor, o batuque e a multidão em festa na luta pela liberdade e pelo fim da escravidão, da exploração, da injustiça. Mais tarde, o samba e o carnaval vitoriosos tomaram conta das avenidas e praças nos centros das metrópoles. Ultimamente, o carnaval das elites – quando os ricos começaram a gostar do samba, até então de gosto vulgar – passou para os sambódromos. É claro, o sambódromo do Rio, com sua arquitetura erótica, foi legítimo, justo e pedagógico para a cultura popular e para a beleza e grandiosidade do Carnaval brasileiro. Porém, aos poucos foi telenovelisado e virou arena de espetáculo nacional e universal. Assim, hoje, o sambódromo virou palco dos pobres fantasiados de ricos desfilarem uma única vez no ano. Financiados pelo grande capital público e privado, onde passam o ano inteiro em suas escolas de samba, construindo as alegorias enormes, revestidas de ouro e prata, multicoloridas, de arquitetura e arte únicas no mundo, eles mesmos, os pobres, se vestindo com fantasias de milhões de pedras preciosas brilhantes (falsas), para desfilar, sambando, cantando aos ricos, esses bem acomodados nos camarotes (de até R$ 6 mil  por dia) recheados de celebridades, nas frisas e nas arquibancadas.  Em síntese: os pobres se vestem de ricos e desfilam e dançam e sambam para alegrar os ricos. A lógica é clara: se os sambistas forem vestidos de pobres como são, os ricos não irão aos sambódromos. É o verdadeiro e histórico “pão e circo” aos pobres – numa versão estratégica telenovelisada atualizada.

Dessa forma, hoje, o carnaval do Brasil – um símbolo, uma cultura, uma identidade nacional – está partido ao meio do jeito que Ítalo Calvino via a si mesmo e o mundo partidos, uma metade boa e outra pervertida. Dividido o carnaval ao meio, horizontalmente e não verticalmente, temos o alto e elevado corporal e o baixo corporal, sendo que uma metade não existe sem a outra. A parte boa – carnaval de rua, avenida, praça – contém samba, alegria, canto, música, fantasias, alegorias livres e espontâneas, protestos, ironias…, onde é preservada e vivenciada a arte, a estética, a cultura, a tradição das festas populares. A parte pervertida são as escolas de samba, altamente sofisticadas, financiadas por organizações hora públicas ora secretas, inventando e ensaiando enredos, construindo carros alegóricos gigantescos e exóticos, confeccionando roupas e fantasias de um mundo que não tem samba popular das tradições africanas. A finalidade maior é a escola campeã do ano, sob a luz das câmeras de TVs para o Brasil e o mundo. Tudo virou mercadoria para ser exibida, fantasiada de ouro e prata, vendida nas arenas e nos palcos pela imprensa midiática ao público telespectador e às plateias selecionadas e exclusivas aos donos do capital, encobrindo o real – a exploração dos trabalhadores. Ocupar o tempo e a mente dos trabalhadores e das massas populares com festas fantasiadas e luxuosas para não terem tempo e nem motivações de se organizarem social e politicamente, em busca das transformações necessárias, eis a questão estratégica.

Neste momento me lembrei do que Bakhtin escreveu da natureza complexa do riso carnavalesco: “um riso festivo… O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo… Todos riem, o riso é “geral”, é universal, atinge a todas as coisas e pessoas…, o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo”. E Bakhtin faz uma severa advertência: “esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente”.

Anúncio final, “aí vem a Vai-Vai”.

 

                                        José Kuiava escreve neste Blog às quartas-feiras.

José Kuiava Contributor

Professor, pesquisador, escritor
José Kuiava é Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp (2012). Atualmente é professor efetivo- professor sênior da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Planejamento e Avaliação Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: autobiografias.inventário da produção acadêmica., corporeidade. ética e estética, seriedade, linguagem, literatura e ciências e riso.