O atraso

Existem assuntos que são desconfortáveis, uma ferida, e nestes casos o melhor e cuidar antes de estourar.

Na semana anterior não foi possível escrever, mas outros veículos produziram textos, palestras, audiências, matérias jornalísticas sobre a o dia da consciência negra e, por conseguinte, trataram do racismo nosso de cada dia.

“- Pai, afasta de mim esse cálice.”

Na maioria dos casos, a voz que ecoava o discurso de luta antirracista produz, consolida e reproduz ao longo dos outros dias do ano práticas que consolidam preconceitos contra a população negra, tudo feito com discrição e muito conhecimento.

De tal forma que confesso a minha pouca ou nenhuma vontade de escrever naqueles dias mais próximos, porque não queria minha voz sobrevivente e minúscula perto da Casa Grande.

“- Afasta de mim esse cálice”

Escrever sobre racismo é um texto que se inicia, e não se conclui, que escrevemos três linhas, e apagamos trezentas, porque na ânsia de denunciar tais atos queremos encontrar uma fórmula de destruir tais memórias, e seguir.

Cada ato que trouxesse para o texto ocultaria pelo menos outros cem, diários, que é como se comporta o racismo, vai ampliando em efeito onda, e cada explicação e contorno do sofrimento causado que ganhe divulgação ao tempo em que denunciam escondem tantos outros, e o pior é a naturalização de tais atos.

Poderia falar de interseccionalidade, de racismo estrutural, de opressão, de genocídio, de silenciamento, de solidão, ainda assim faltariam muitos outros termos para explicar a dor. A dor de ser marginalizado, a dor de ser preterido, a dor de ser invisível na dor.

Até que um dia essa dor que você consegue nominar em um destes termos, ou mesmo em outros de uma lista que não acaba, e parece ser renovada a cada escala, alcança seu coração… É então que pensamos nem ser capazes de suportar tanta dor.

” – De vinho tinto e de sangue”… negro

Resilientemente suporta-se, sabendo que no outro dia tudo será como antes. Até aqui falei sobre o nó, mas os tempos pedem que eu fale de desejos tal qual filme de Tarantino ou de Spike Lee.

Sim, eu imagino, e tenho tanto ódio dentro de mim, engana-se quem acredita que a paz é amor, a paz é escolha dos medíocres, assim como eu, que fingem que tudo está posto no devido lugar: Um vídeo bonitinho sobre o criado-mudo, ora veja só.

Como se Machado de Assis não tivesse sido embranquecido, e ensurdecido na negritude. Entendem? Outros tempos!

O negro é mudo, surdo e cego, antes de tudo é criado para entender seu lugar sem reclamar, sem chorar, sem adoecer, sem esmorecer, sem rebelar, sem matar…  Embora a qualquer momento se possa morrer.

E então ouço desde sempre que ódio não leva ninguém a nada. Errado! Leva-nos para o desemprego, para a reprovação, para o trabalho infantil, para a prostituição, para subempregos, para as famílias desestruturadas, para a pobreza, para as cenas de crime, para a cadeia, para a bala perdida, para os assassinatos sem solução, para as chacinas…

Existem os outros casos, mas esses hoje devem ficar calados, e entender que são exceções construídas para justificar a regra que permite o racismo. O ódio nos leva todos os dias até a morte, e quando estivermos exaustos de visitá-la e enganá-la, ela se aproximará,… e enfim alguém vai nos tirar para dançar.

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

follow me