O escritor moçambicano merece sempre nossa visitação, nossa leitura e nosso prazer em lê-lo. Hoje reli o conto “O Assalto” (publicado na coletânea Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos – Lisboa : Caminho e reeditado como texto independente com ilustrações de Susana Carvalhinhos pela Padrões Culturais Editora). Narrando um assalto à mão armada, Mia Couto vai produzindo inusitadas formas de dizer, como a descrição do medo: “O gelo endovenoso, o coração em cristal: eu estava na ante-câmara, à espera de um simples estalido”. Mais adiante: “Temos medo do que não entendemos. Isso todos sabemos. Mas, no caso, o meu medo era pior: eu temia por entender”.
Como em muito outros de seus textos, o autor vai criando neologismos extremamente significativos: o assaltante é um “mautrapilho”. “me executar a sangue”. Quem é leitor de Mia Couto sabe dessa sua virtude, até mesmo nos títulos de seus textos não ficcionais, como “Interinvenções” e “Pensatempos”, ou no titulo do gostoso “Jesusalém”, uma terra onde o diabo perdeu as botas.
Não conto o conto. Mas não consigo deixar de transcrever uma passagem que dá ao leitor a que se refere o clímax deste conto e ao mesmo tempo faz uma crítica social contundente: “No meu tempo de minono tínhamos pena dos pobres. Eles cabiam naquele lugarzinho menor, carentes de tudo, mas sem perder humanidade. Os meus filhos, hoje, têm medo dos pobres”.
Falando de pobres, para colocar as coisas em seus tempos e em nossos territórios, já que rimos “quando um soldado capenga do III Reich entra em cena”, já eles são apenas memória: por que o pensamento conservador têm medo dos pobres e ao mesmo tempo lhes rouba qualquer política de inclusão, em nome de um ajuste fiscal, isto é, em nome de uma maior transferência de valores para os bancos? Por que Tombini não imagina baixar a taxa Selic, como fez o Federal Reserve nos EEUU para incentivar a retomada do crescimento? Os juros dos EEUU ainda não subiram porque a economia ainda não está a todo vapor; aqui os juros sobem para que a economia ganhe fôlego ou em nome de uma suposta luta contra a inflação, como se esta fosse de demanda e não de paralisia produtiva.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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