O ANO QUE NÃO FINDA

Fins de dezembro. No calendário é fim de ano. E todo fim pede balanço, pede exame do que passou, já que o passado – recente ou longínquo – é constitutivo do futuro porque ensina o que evitar ou o que selecionar para que permaneça e dê frutos.

Pois estamos num tempo em que o calendário pede estas coisas todas. E o primeiro apontamento a fazer é que este é um ano que não finda, porque foi ano fundador de um futuro, como foi, na história recente do Brasil, 1930 ou 1964 ou 1968. Por diferentes caminhos e conjugando condições históricas distintas, cada um destes anos iniciou um tempo cuja memória deve permanecer sempre presente entre nós.

O “Estado Novo”, a ditadura de Getúlio, respondeu a condições históricas que depuseram um governo através de uma luta de interesses que envolviam o mundo agrário e o mundo urbano em formação. Se a perspectiva mais moderna perdeu, a reação veio na revolta de 1932, até hoje ano comemorado pelos paulistas como “revolução constitucionalista”. Em 1964, as forças de direita se unem contra as tentativas, que ficaram muito mais nas intenções do que nas ações impossíveis, dada a conjuntura política, de implementação das então chamadas reformas de base que pretendiam modernizar o país, levando-o a enfim entrar no Século XX. Com terços e armas na mão, a classe privilegiada pelo sistema semi-escravocrata que insiste e persiste, um governo legítimo é derrubado e instala-se uma ditadura militar.

No interior do golpe, outro golpe em 1968, com a deposição de Costa e Silva e a instalação da junta governativa através do AI-5 (era através de “atos institucionais” que o alto comando da chamada revolução, na verdade um golpe de estado, manifestava-se e instituía novas realidades políticas). Foi o golpe dentro do golpe. Assume Garrastazu Medici para o período mais obscuro e tenebroso do regime militar. Com a participação da mídia então emergente que fazia a todos ouvirem o “Brasil, eu te amo”, e o lema “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Quem criticava não amava… e quem não amava merecia o degredo ou a expulsão do país. Foram os anos de chumbo que duraram um tempo psicológico sem fim.

Depois de 1985, conhecemos um período de democracia formal e até uma democracia que tentou incluir os tradicionalmente afastados do banquete da riqueza nacional. Foi nosso período de aprendizagem de convívio democrático! Um tempo interminável para uma elite abastada e acostumada a ser dona no orçamento público: tudo em seu benefício. Pois não foi. Isto foi se tornando insustentável até chegarmos ao golpe de 2016.

Fazer um “balanço” deste ano significa, antes de mais nada, reconhecer que este é um ano que não finda e que permanecerá como ano inaugural de um período histórico cujos caminhos reais somente podem ser rascunhados. E para rascunhar o futuro nada melhor do que olhar o que se passou.

O ano se inicia com o sucesso absoluto da política econômica implementada por Joaquim Levy: o rentismo que havia se tornado oposição durante o primeiro mandato da Presidente Dilma foi beneficiado e tudo fluiu para seus cofres. A taxa SELIC aumentou. Sepultou-se a ideia da “nova economia” que se tentou implementar no primeiro mandato: a passagem de um ciclo de desenvolvimento baseado no consumo de bens duráveis para um ciclo de desenvolvimento baseado na produção. Reduziu-se a taxa de juros ao mínimo. Mas a indústria brasileira, cujos próceres tomaram parte na elaboração da própria política, já não era mais industrial, era rentista e a redução de seus ganhos os conduzira à oposição.  A nomeação de Joaquim Levy como Ministro da Fazenda foi uma tentativa de sobrevida quando a morte já estava definida. O sucesso de Levy foi a destruição da “nova economia” e o retorno ao redil do rentismo. 2016 se inicia com a troca de ministro, mas já era tarde para implementar uma política de ampliação do mercado de consumo com a inclusão dos milhões de brasileiros que ainda estavam no nível da miséria. Não havia mais tempo para o timoneiro mudar o rumo do navio.

Chegou abril e um deputado criminoso, que durante todo o ano anterior complicou politicamente a governabilidade, abriu o processo de impeachment. Em janeiro de 2014, em Portugal, já afirmara que se Dilma viesse a ganhar as eleições de 2014, ganharia mas não levaria. Levou por um ano e poucos meses entregando anéis, dedos, mãos e por fim todo o governo. Os senadores – antigamente habitavam o Senado homens sábios – aprovam o impeachment mesmo reconhecendo que não havia crime de responsabilidade que justificasse a condenação. Era o reconhecimento de que havia um golpe parlamentar, na verdade conduzido e arquitetado fora do Parlamento pela mídia, pela polícia e pelo mundo jurídico. E o ano começa a implementar o regime sob o qual estamos vivendo: um regime policial-jurídico com o apoio irrestrito da mídia tradicional.

Ou seja, na frente política, o parlamento realiza o que demandam a polícia, o ministério público e os juízes, todos estes a serviço do capital. Tanto o financeiro, que já estava garantido desde Joaquim Levy, quanto o capital tradicional (ainda produtivo) que exigia internacionalmente o retorno do país ao redil típico do fornecedor de matéria prima. Era preciso sepultar de vez esta irrequieta emergência de um país dentro do concerto mundial sem submissão à sede imperial, aparecendo no cenário como independente e reunindo-se a blocos que fazem frente aos interesses imperiais: BRICS e Mercosul. As grandes empresas de construção civil – elas detêm a mais alta tecnologia mundial em exploração de petróleo em águas profundas e a mais alta tecnologia em construção civil – deveriam sofrer uma correição necessária às empresas norte-americanas que estavam sofrendo concorrência. Como se sabe, o capitalismo de concorrência não é o forte do capitalismo global… Pois para isso se instalou já em 2013 a Operação Lava Jato, que não combate a corrupção, mas combate a emergência de uma economia independente. Não por acaso seus agentes foram treinados nos EEUU e o juiz ao país retorna toda vez que encontra alguma dificuldade de decisão. Vai buscar conselhos, oficialmente colaboração.

Tudo bem sucedido e orquestrado. Instalado no executivo um vice-presidente obediente, o saco de maldades vai sendo imposto aos brasileiros: a PEC do teto, na verdade, a redução de gastos sociais em benefício do rentismo; a reforma do ensino médio para produzir mão de obra barata e sabidamente mal-preparada (nada como se saber mal-preparado para aceitar baixos salários); a reforma da previdência para evitar que haja aposentados no futuro; a reforma trabalhista, isto é, a destruição dos avanços sociais e o restabelecimento da casa grande e da senzala.

O Executivo está conseguindo aprovar tudo… mas é tão incompetente e está tão enlameado em negócios escusos (eles não são corruptos, porque este adjetivo ganhou foros de propriedade privada de políticos petistas pela ação de Sérgio Moro), que o gananciosos políticos neoliberais agrupados num partido que se diz social democrata estão vendo a oportunidade de um retorno ao poder pelas vias do golpe dentro do golpe.

Há pois um 1968 em gestação! Haverá golpe dentro do golpe? Se houver, é por burrice da ganância tucana. Levar até 2018 o governo Temer subordinado ao que lhe é ditado é muito melhor do que assumir os riscos da impopularidade das medidas concretas de transferência de renda e aumento do fosso abismal da desigualdade social. Geraldo Alkmin quer que Temer pague o preço; o açodado Aécio Neves quer sepultar Temer e assumir de vez; José Serra apenas aguarda o momento da internação por senilidade. Este o momento presente. O passado nos ensina que haverá golpe dentro do golpe! E o golpe dentro do golpe, mesmo com Temer na presidência, será a entrega da política social à polícia. Quem viveu os anos que se seguiram a 1968 sabe o que isto significa: repressão política por uma polícia treinada para matar. 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.