Nudez, de Carlos Drummond de Andrade

Não cantarei amores que não tenho,

e quando tive, nunca celebrei.

Não cantarei o riso que não rira

e que, se risse, ofertaria a pobres.

Minha matéria é o nada.

Jamais ousei cantar algo de vida:

se o canto sai da boca ensimesmada,

é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,

nem sabe a planta o vento que a visita.

 

Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,

mas tão disperso, e vago, tão estranho,

que, se regressa a mim que o apascentava,

o outro suposto é nele cobre e estanho,

estranho e cobre,

e o que não é maleável deixa de ser nobre,

nem era amor aquilo que se amava.

 

Nem era dor aquilo que doía;

ou dói, agora, quando já se foi?

Que dor se sabe dor, e não se extingue?

(Não cantarei o mar: que ele se vingue

de meu silêncio, nesta concha.)

 

Que sentimento vive e já prospeta

cavando em nós a terra necessária

para se sepultar à moda austera

de quem vive sua morte?

Não cantarei o morto: é o próprio canto.

E já não sei do espanto,

da úmida assombração que vem do norte

e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,

ajusta em mim seu terno de lamentos.

Não canto, pois não sei e toda sílaba

acaso reunida

a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.

 

Amador de serpentes, minha vida

passarei, sobre a relva debruçado,

a ver a linha curva que se estende,

ou se contrai e atrai, além da pobre

área de luz de nossa geometria.

Estanho, estanho e cobre,

tais meus pecados, quanto mais fugi

do que enfim capturei, não mais visando

aos alvos imortais.

 

Ó descobrimento retardado

pela força de ver.

Ó encontro de mim, no meu silêncio,

configurado, repleto, numa casta

expressão de temor que se despede.

O golfo mais dourado me circunda

com apenas cerrar-se uma janela.

E já não brinco a luz. E dou notícia

estrita do que dorme,

sob placa de estanho, sonho informe,

um lembrar de raízes, ainda menos,

um calar de serenos

desidratados, sublimes ossuários

sem ossos;

a morte sem os mortos: a perfeita

anulação do tempo em tempos vários,

essa nudez, enfim, além dos corpos,

a modelar campinas no vazio

da alma, que é apenas alma, e se dissolve.

(Um eu todo retorcido. Antologia poética. RJ : Record, 40ª. ed, 1998)

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.