Não podemos ser hipócritas, ainda que torçamos com muita força para termos alguma esperança. Os augúrios de ano novo estão mais para lúgubres do que para venturosos. Uma ponta de esperança insiste e persiste: no movimento dos secundaristas que ocuparam escolas em 2016. De resto, nada. As centrais sindicais estão sentadas à mesa para negociarem a reforma trabalhista. A oposição, em minoria, com a presença dará aval ao que virá. Os partidos estão esfacelados. Não sobra nenhum.
No entanto, ouvimos alto e bom som que as instituições estão funcionando normalmente, a mostrar a maturidade de nossa democracia. Quem não crê, que pense como funciona com perfeição, isenção, imparcialidade e rapidez a justiça quer aquela sediada em Brasília, quer aquela que a comanda, sediada em Curitiba. É para se crer em tudo, particularmente na Rede Globo.
Por que teremos no ano que vem velhas maldades? Porque jamais conseguimos superar definitivamente a distinção entre a casa-grande e a senzala, desde os começos da exploração da cana-de-açúcar. O regime escravocrata que fomos os últimos a abandonar foi substituído por um regime alicerçado na desigualdade social.
O chamado Brasil moderno, aquele urbano que começa a emergir nos anos 1930, com uma industrialização puxada pela iniciativa do Estado – quem ainda se lembra da Fábrica Nacional de Motores, a FNM? Os caminhões fenemê povoaram minha infância ainda nos anos 1950… – não suplantou o Brasil dos terratenientes, até porque alguns dos próceres da indústria provêm dos filhos-família dos antigos engenhos.
Em função de suas origens, o empresariado brasileiro continua a agir de forma muito distante daquela preconizada por Henry Ford, que dizia ser necessário pagar seus empregados de modo a que eles pudessem comprar o que sua fábrica produzia! Aqui é o inverso: foi preciso decretar a existência de um salário mínimo para que algum pagamento fosse feito. No fundo – e a classe média está impregnada deste ponto de vista – um prato de comida e uma roupa velha é um pagamento mais do que digno para o trabalho. Da doméstica ao metalúrgico.
Para seu desespero, no entanto, o Estado sempre pendeu para a defesa do mais fraco, do trabalhador, ainda que toda sua estrutura beneficie, a largo e no fim das contas, a própria elite que dele se apodera. Mas nossa elite é tão tacanha, tão mesquinha, que o Estado muito frequentemente tem que agir para salvaguardar os seus interesses mais profundos do que sua mesquinhez mais presente e sem horizontes.
Assim, o ano que se inicia trará mais deste velho esquema. Afastados do comando do Estado um grupo que, por pecados próprios, preparou o terreno para o golpe, afastou-se também o que de bom fez este mesmo grupo político: uma escada escarpada de melhoria das condições de vida dos miseráveis, elevando a renda do trabalho (que a imprensa batizou de passagem para a classe média para evitar dizer a verdade de que a mudança real foi o aumento do ganho do trabalho). Uma política conduzida para diminuir o fosso abismal entre a casa-grande e a senzala é insuportável para nossa elite. A luta de classe, que perdemos, se mostrou no momento do golpe político e se materializa nas mais esdrúxulas PECs: do teto de gastos sociais, da reforma do ensino médio, da reforma da previdência, da legislação de precarização do trabalho, da terceirização inclusive das funções-fim das empresas etc etc.
Bom, para os ricos e para os CEOs das empresas, o ano que vem será um bom ano novo! Para a classe trabalhadora será um ano de maldades materializadas. A próxima, já anunciada pelo Ministro da Fazenda, será aquela que excluirá de nossa carta magna o conceito de direito adquirido. Afinal, disse o senhor ministro, num aviso prévio, que “direito adquirido é uma ficção jurídica”. Sendo ficção, não faltará um STF para dizer que “direito adquirido” jamais existiu, exceto para juízes, procuradores e promotores, repetindo sentença que fixou o texto dos servidores públicos do Estado de São Paulo, incluindo nele todas as vantagens obtidas durante o exercício do cargo, exceto para juízes, procuradores e promotores. A sentença esqueceu da polícia, mas a justiça é sempre justa para a justiça. E está quase a reconhecer que a polícia faz parte de seus quadros, já que juízes comandam investigações policiais que depois julgarão! Podem, pois, os policiais ter esperanças. E continuarem a reprimir que serão premiados.
Assim, feliz ano novo para eles – elite, CEOs, banqueiros, juízes e adjacências procuratrícias ou policiais; infeliz ano para nós que circulamos no mundo concreto do trabalho ou dos proventos da aposentadoria.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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