Nove Noites, de Bernardo Carvalho

O carioca Bernardo Carvalho é um colecionador de merecidos prêmios. Este Nove Noites recebeu o prêmio Portugal Telecom 2003.

Desde as primeiras páginas, este livro enreda o leitor numa investigação iniciada 62 anos depois dos fatos. O fato: o etnólogo – às vezes antropólogo – norte-americano Buell Quain, aluno de Franz Boas, orientado por Ruth Benedict, vem ao Brasil para seu trabalho de campo a investigar as formas de vida de indígenas brasileiros. Matou-se na noite de 1 de agosto de 1939.

O tempo narrado é, portanto, aquele do Estado Novo no Brasil e da deflagração da 2ª. Grande Guerra na Europa. O tempo da narração é dos inícios dos anos 2000: “Ninguém nunca me perguntou. E por isso nunca precisei responder. Não posso dizer que nunc ativesse ouvido falar nele, mas a verdade é que não fazia a menor ideia de quem ele era até ler o nome de Buell Quain pela primeira vez num artigo de jornal, na manhã de 12 de maio de 2001, um sábado, quase sessenta e dois anos depois da sua morte às vésperas da Segunda Guerra.”

Na técnica narrativa, dois narradores falam, em primeira pessoa, paralelamente – o ‘corpo’ das letras mostra a mudança de narrador e de tom da narrativa. O primeiro narrador a aparecer conviveu com a personagem central da história; o segundo narrador investiga a história de vida de Buell e possíveis razões para sua morte. Estas narrativas de entrecruzam no percurso da leitura de modo que o leitor vai reconstituindo um quadro dos acontecimentos, mas sem conseguir fechar as peças do quebra-cabeça.

A narrativa da testemunha dos acontecimentos, o gênero é uma “carta” destinada a alguém desconhecido, mas esperado. Repete-se várias vezes o mesmo enunciado quando este narrador: “Isto é para quando você vier”. Aqui você encontrará um conjunto de informações sobre Buell, desde suas viagens pelo mundo, a passagem por tempo em Fiji, de que resultaram dois livros publicados postumamente, seu contato com os Trumai no centro-oeste brasileiro, de que foi expulso pelo Serviço de Proteção ao Índio sem que as razões fiquem muito claras. Depois, toda a descrição de sua chegada a Carolina (Sul do Maranhão) cidade da qual partirá para a aldeia dos índios Krahô, com os quais conviverá até o suicídio. O engenheiro-narrador foi um dos que o recepcionaram quando da chegada a Carolina. Foram apresentados, mas Buell não deu muita atenção ao apresentado. Depois se tornaram amigos, e quando vinha à cidade o antropólogo sempre o visitou, sempre lhe confidenciou suas andanças, sua passagem pelo Rio de Janeiro. Da última vez, esperava cartas da família e pediu que assim que recebidas, fossem levadas por portador para a aldeia. Foi o que aconteceu. Segundo a narrativa dos índios, o antropólogo teria lido as cartas, teria ficado desesperançado e as queimou todas. Então decidiu voltar.

Dois índios acompanharam o antropólogo que voltava para Carolina e que tinha se despedido dos Krahô. A certa altura da viagem, ele pediu para descansar. Mandou que um dos índios fosse à fazenda mais próxima, com um bilhete em inglês que obviamente o portador não saberia ler. Pedia pás e enxadas. Eram os materiais com que queria que fosse cavada sua sepultura. E então começou a escrever cartas, oito no total, destinada a diferentes pessoas. O outro acompanhante dormiu, mas preocupado: acorda-se quando ele estava se mutilando, se cortando com gilete. Tenta convencê-lo a parar. Consegue e vai dormir. Quando o primeiro rapaz retorna da fazenda sem nada, porque o dono – Sr. Balduíno – estava viajando e nenhuma outra pessoa sabia ler na fazenda, encontra o Dr. Buell enforcado, pendurado de uma árvore. Foi enterrado ali mesmo, onde morreu e onde queria ser enterrado. Apavorados e com medo de serem acusados de assassinato, os índios levam tudo o que pertencia ao antropólogo a seu amigo. Todas as cartas e as narrativas os inocentavam. As cartas foram remetidas para os destinatários, mas uma delas o engenheiro guardou. É para o desconhecido destinatário desta carta que ele escreve, porque esperava sua chegada, mas com ficou velho, achou que deveria preparar este amigo que viria com certeza.

Nesta longa “carta” ao desconhecido, inúmeras vezes o leitor é levado a imaginar ‘coisas’ sobre Buell: questões de relações sexuais, família nos EEUU, traição da mulher, gosto por prostitutas, relações homossexuais, e sempre uma possível doença de que sofria o antropólogo. Todas estas “insinuações” fazem o leitor ir tentando construir uma explicação para o inesperado suicídio.

O segundo narrador é um investigador. Vai atrás de documentos, das cartas, das notícias. Vai a um encontro de povos indígenas, porque a eles compareceriam membros do povo Krahô: quer informações. No entanto, ninguém que tenha convivido com o antropólogo está vivo. Somente um idoso conhecia a história porque lhe haviam contado. Ele tenta desesperadamente obter novas informações, mas nada descobre. Compulsa as cartas e a cada vez mais desconfia de que a outra história não contada que esclareceria o ocorrido. Alguns indícios nas cartas de Buell confirmariam isso, desde uma frase que ficou sempre martelando: numa das cartas escritas na noite do suicídio, ele diz que “os índios felizmente estão salvos”. Salvos de quê, se pergunta o narrador-investigador. Neste segunda narrativa, com seus avanços e recuos, com as hipóteses formuladas e abandonadas, o leitor acompanha três histórias que vão emergindo: aquela de Buell; aquela da vida do próprio narrador; e por fim a história da própria investigação.

Como se pode ver, o entrelaçamento de tantas histórias mantém o leitor em atenção constante. A partir de certo momento da leitura, tudo o que se quer saber é: há razões para além daquelas do próprio suicida, para que ele cometa o suicídio?

A investigação do segundo-narrador, buscando em todos os cantos algum elemento que justificasse o suicídio (ou o assassinato), acaba por ter contato com o suposto filho de um fotógrafo que fora amigo (amante?) de Buell: no hospital em que estava internado o pai do “investigador”, no mesmo quarto, estava hospitalizado um senhor desconhecido para o investigador. Ele sempre esperava a visita de alguém. Confunde o investigador com este alguém que esperava, e o que o investigador escuta é “Well”… mais tarde se dá conta: o moribundo falava “Buell”! Assim, descobre que este era o fotógrafo a que já havia chegado em sua investigação. Vai atrás de seu filho, consegue contatá-lo e por fim, por um acaso, consegue ser recebido por ele. Descobre a semelhança física entre Buell (que ele conhece somente por fotografia) com este suposto filho do fotógrafo, que lhe conta sua própria história: a mãe o deixara, o pai o entregara aos avós, quando chegou aos 17 anos fica sabendo que não era filho do fotógrafo e os avós o expulsam de casa!!!

São muitas histórias intercaladas… e o suspense do narrativa deixa o leitor cada vez mais ávido por saber: afinal, o que aconteceu? Se no final, fica sabendo que Buell tivera um filho que não conheceu, com a mulher que amou e que o traiu, fica sempre a dúvida: se descobre que é pai, por que se suicida?

Por fim, uma nota sobre o título: foi durante nove noites que o engenheiro de Carolina acompanhou Buell na última de suas viagens de Carolina para a aldeia Krahô! Nestas noites, ouviu as histórias de vida do antropólogo. É daí que vem o título do romance.

 

Referência. Bernardo Carvalho. Nove Noites. São Paulo : Cia. das Letras, 2002.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.