O texto de hoje dialoga especialmente com a Nota introdutória que o professor Wanderley Geraldi escreveu para “Textos de Arquivo XII: Possíveis alternativas para o ensino da Língua Portuguesa”, publicado aqui no blog, em 22 de setembro de 2017.
O modelo de ciência moderna com que estamos familiarizados foi consolidado a partir de uma determinada formalização que o inscreve na perspectiva do conhecimento verdadeiro, último e único sobre o real, que se caracteriza pelo grande respeito à lógica e às determinações da experiência, substituindo as especulações filosóficas por um modo científico de pensar. Essa prática científica definiu e sustentou, como procedimentos adequados e eficientes, aqueles desenvolvidos no processo de investigação das realidades natural e exata. Assim, o significado atribuído ao método de investigação científica coincidiria com o método de investigação do mundo físico: a condição imprescindível de se alcançar a verdade sobre o real.
Boaventura de Sousa Santos (2004), ao definir o que chama de paradigma moderno dominante, evidencia que tal modelo global de racionalidade científica distingue o senso comum e os estudos humanísticos como formas de conhecimento não-científico, o que, dentre outros aspectos, faz desse modelo um modelo totalitário, uma vez que nega as demais formas de conhecimento que não se pautam por seus princípios epistemológicos e regras metodológicas, e desconfia sistematicamente das evidências da experiência imediata.
Entretanto, ao mesmo tempo em que tal modelo de cientificidade se estabelecia como hegemônico, sua competência para expressar a existência social, cultural e humana vinha sendo questionada, pois suas limitações foram desveladas pelas particularidades da realidade humana. E por quê? Porque para estudar os fenômenos sociais como se fossem fenômenos naturais, ou para conceber os fatos sociais como coisas, é necessário reduzi-los às suas dimensões externas, e por isso corre-se o risco de distorcê-los grosseiramente ou reduzi-los à quase irrelevância.
A complexidade da condição humana não cabe nos limites da cientificidade: verdade universal, neutra, unicidade das ciências, linguagem matemática para a tradução do real. E, muito menos, permite o atendimento de uma condição fundamental do procedimento científico, que é a possibilidade de tratar o fenômeno submetido ao conhecimento científico através da experimentação, controle e repetição do fato em condições iguais e controladas externamente pelo cientista, que aprecia de um determinado ângulo pronto a dizer sim ou não, fingindo um aniquilamento diante do que olha.
Na ciência moderna, o conhecimento se consolidou através do avanço pela especialização e tornou-se mais rigoroso por restringir ao máximo seu objeto; na medida em que consagrou o homem como sujeito epistêmico, expulsou-o como sujeito empírico, construindo assim a dicotomia sujeito/objeto; erigiu um conhecimento que se exime de dialogar com outras formas de ciência, que considera superficial, ilusório e falso todo saber do senso comum. Por tais características presume-se que a ciência pós-moderna, ao se constituir em torno de temas e de projetos de vida local, tem como horizonte a totalidade universal cujo conhecimento se baseie nas condições de possibilidade da ação humana e assuma um posicionamento científico marcado pela pluralidade metodológica, que não separe o sujeito do que ele estuda e que admita seu caráter subjetivo e seus resultados carregados de um olhar pessoal.
As investigações no/do cotidiano escolar mostram que não existe uma verdade universal e neutra, que o sujeito que conhece e aquele que é conhecido são profundamente marcados por suas identidades culturais, entendidas aqui como inserção em uma sociedade e em uma história, portadoras de várias identidades (classe social, gênero, etnia, religião). Estas investigações mostram que, se a ação científica não está sujeita à repetição, previsão, mensuração e experimentação, há, portanto, uma bifurcação nos procedimentos de análise que, de um lado, induz a procurar compreender essa ciência a partir de suas formulações, de seu status e de sua análise bipolar – antigo e novo, inédito e repetido, tradicional e original – ou que, por outro lado, leva a compreender a ciência a partir de saberes que são independentes das ciências e que necessariamente se inserem em uma prática discursiva.
SANTOS, B.S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2004.
Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.
Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.
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