Eis um livro de fofocas das altas rodas do Império! Entre “braguilhas de prata”, “desponsórios estonteantes”, “librés agalatoadas”, o paulista de Tatuí, Paulo Setúbal, que chegou à Academia Brasileira de Letras, “ensina” a história da Casa Grande. Dentre meus registros de leitura, este é talvez o mais longo que escrevi e escreverei. Não resisti à linguagem dos anos 1920 nem ao modo de apresentar à patuleia como vivia nababescamente a corte, cortesãos e anexos! E tudo contado em tom de fofoca!!! Mas com “rigor” histórico. Nunca li crônicas sociais, mas devem ser neste estilo ainda hoje…
O autor se dedicou ao romance histórico. No gênero não escreveu apenas romances (como Marquesa de Santos), mas também textos mais curtos, crônicas, todas envolvendo personagens históricos, seus feitos e suas galhardias.
Este Nos Bastidores da História é composto por um conjunto de 14 crônicas escrita numa linguagem irônica, agradável e, para o leitor de hoje, surpreendente. É divertido! E ao mesmo tempo fofoqueiro!!! Dos fatos históricos, retira diz-que-diz-que e diverte. Vamos a suas crônicas, iniciando pela inusitada abertura que não posso deixar de transcrever (mantenho nesta citação, mas não nas demais, a ortografia da época, pois leio o livro em sua primeira edição de 1928):
As paginas que seguem são a collectanea de varias colaborações em jornal. Tinham ellas o destino certo de morrer soterradas nas collecções. Não sonhavam, jamais,viver um dia a vida do livro.
Mas os editores, como é notorio, são raça insaciavel. Nada ha que os contente. Andam todos os dias atráz do escritor, famintos por originaes. É um pedir livros sem cessar. É um atropelar o romancista sem dó. Que fazer? A gente, para se ver livre deles, corre ás coisas velhas, cata-as, ajunta-as, e, com um uff!, entrega-as aliviado ás mãos dos taes.
Eis a razão deste livro. Se acaso, leitor, você não gostar dele, não culpe a mim: culpe á COMPANHIA EDITORA NACIONAL.
Aquillo é uma praga!
São Paulo – 928 PAULO SETUBAL
Na revolução de 1842
O primeiro ministério após a maioridade de D. Pedro II foi liberal. Por uma questão pouco importante, a retirada comandante do Rio Grande do Sul, o ministério se dividiu e D. Pedro II demitiu-o todo, substituindo pela facção Conservadora. Estes quiseram a deposição do presidente da Província de São Paulo, substituído por Costa Carvalho, Barão de Monte Alegre, odiado por todos os liberais. Em Sorocaba, os revoltosos declaram o coronel Raphael Tobias de Aguiar como Presidente da Província (ele já fora presidente da presidente da província).
Seguem-se dias conturbados e descritos com maestria nesta crônica. A chegada do Padre Feijó, ex-regente, é narrada com desenvoltura. Os rebeldes recebem também o apoio de Domitila de Castro, a marquesa de Santos! É a ela que é destinado o maior número de páginas da crônica, já que publicamente o Presidente rebelde, o coronel Tobias de Aguiar, a detestava. No entanto, para surpresa de todos, depois de encerrado definitivamente o caso da Marquesa com D. Pedro I, eles passam a viver juntos e se casam. Extraio da crônica uma passagem citada pelo autor, atribuída à filha bastarda de D. Pedro I, a Condessa de Iguaçu e seu comentário tipicamente de fofoca “palaciana”, de bastidores que a história oficial não registra:
– “Um dia vi que estavam preparando o altar da casa de D. Gertrudes. Perguntei à Mamãe porque é que estavam armando o altar. Ela me disse que eera para um batizado. É verdade que houve este batizado; mas não foi só. Antes eu vi sair Mamãe muito bem vestida do seu quarto; o Raphael Tobias também sair muito bem vestido, de casaca. Eu fiquei olhando, e assim a minha sobrinha Escolástica. Eram cinco horas. Vimos Mamãe, o Tobias, e o padre capelão da casa, se dirigirem para o altar. Principiou a cerimônia. Eu vi então que Mamãe ia se casar…”
Si, no oratório particular de D. Gertrudes, em Sorocaba, naqueles dias de perigo, dias procelosos de revolução, ante a tropa ameaçadora de Caxias, que vinha num arremesso sobre a cidade, o coronel Raphael Tobias de Aguiar, presidente rebelde da Província, casou-se com D. Domitila de Castro Canto e Mello, Marquesa de Santos, a mulher mais famosa do Brasil.
Dona Carlota Joaquina
Esta foi a crônica com que mais me diverti! O autor explora o fato de que D. João VI e sua mulher, Carlota Joaquina, simplesmente se detestavam! Jamais estavam juntos a não ser quando o protocolo o exigia. Chega a pormenores: quando D. João adoecia, Carlota Joaquina o visita e cuidava dele; quando Carlota estava doente, D. João não aparecia… Também é sabido que D. Carlota, nossa primeira rainha, detestava o Brasil, tanto que no retorno, ao chegar a Lisboa, dizem que jogou ao mar (ou a Tejo?) os sapatos que usava porque desta terra não queria levar nem um grão de pó! “Não teve ainda esta nossa pobre, inofensiva terra de papagaios, detratora tão azeda e tão feroz…” A fofoca desta crônica fica por conta dos amores de D. Carlota com Fernando Carneiro Leão, casado com a ciumenta D. Gertrudes.
A rainha fez loucuras pelo moço. Mas Fernando Carneiro Leão era casado e tinha mulher ciumenta. A mulher, D. Gertrudes Pedra, enfureceu-se. Disse coisas tremendas contra D. Carlota. Não houve impropérios, por mais nus, que o ciúme não fizesse espumejar na boca da enganada. A rainha soube daquelas iras. O seu orgulho, evidentemente, não sofreu o ser assim violentamente ultrajada por uma mulherinha.
Aconteceu um dia que D. Gertrudes é assassinada. D. João ordena que o desembargador Albano Fragoso investigasse. E depois dessa investigação, D. João recebe o desembargador:
– Que apurou, desembargador?
– Senhor! Como juiz, sei quem mandou matar a D. Gertrudes, mulher de Fernando Carneio Leão. As peças do processo não deixam dúvida.
– Muito bem. Então?
– Como homem, Majestade, eu não sei!
- João intrigou-se. Determinou:
– Ordeno que fale!
– Vossa Majestade ordena-me. Não tenho que discutir. Cumpro as ordens de V. Majestade: foi a Rainha, minha senhora, quem mandou o mulato Corta-Orelha assassinar a D. Gertrudes. Vossa Majestade poderá constatá-lo neste processo…
Lá arremata o cronista:
“D. João, aturdido com o que ouviu da boca do desembargador José Albano Fragoso, disse ao juiz:
– Convém que desapareça, para sempre, mais este escândalo de minha mulher.
“Tomou o processo, leu-o, e mandou queimar a papelada. Nunca mais se falou em juízo deste crime.”
- Maria I, a louca
- Maria I, aquela que condenou Tiradentes, enlouqueceu em 1792. Não resistiu a duas grandes perdas: o marido e depois o filho D. José, príncipe herdeiro. Ela acompanhou D. João VI na vinda ao Brasil e vivia no Paço, visitada pelo filho e por D. Carlota Joaquina com a qual conversava sobre o tempo… Morreu no Brasil, mas quando D. João voltou a Portugal, carregou consigo seus restos mortais em esquife luxuoso montado no navio.
- Maria I tinha velho hábito, que jamais abandonou: saía todas as tardes passear de carruagem. Carregavam-na em cadeirinha até à sege. Vinha ela vestida de seda negra, “chalé de cor honesta”, cabelos soltos nas costas. Ao sair, tapando o rosto com o leque, exclamava para a Joaninha, que ia ao lado:
– Vou para o inferno! Estou no inferno! Não quero que o diabo me veja…
Uma aventura do Imperador
As aventuras amorosas de D. Pedro I são conhecidas e estão nas páginas de todas as crônicas históricas. Esta aventura que nos narra Paulo Setubal, no entanto, tem sabor especial. A lindíssima D. Marianna Carlota Verna de Magalhães ficou viúva do conde de Belmonte. Viúva linda, D. Pedro a cobiçou.
Assim, em certo beija-mão, no Paço, o Imperador disse num cochicho para a condessa:
– Amanhã, pelas duas horas, Vossa Mercê trate de me esperar. Vou visitá-la. E vou só.
- Marianna Carlota, muito surpresa:
– Imensa honra, majestade!
E lá foi D. Pedro à caça. Recusado, assim mesmo quis pegar a dama à força. Imediatamente apareceram dois homens “armados de grossos porretes de caviuna”. E… Dizem que desandaram no Imperador uma sova de mestre!” Será verdade?
O certo é que D. Marianna abandonou a corte e foi para seu sítio longe do burburinho. Quando morreu D. Leopoldina, ficou D. Pedro a matutar: a quem entregar a educação do herdeiro, numa “corte de costumes fáceis”? Não titubeou e foi buscar a condessa D. Marianna que foi encarregada da educação de D. Pedro II.
- Amélia
Viúvo, D. Pedro I encarregou Barbacena de lhe encontrar uma esposa nos reinos da Europa. Depois de levar “inúmeras tábuas”, o embaixador conseguiu negociar o casamento do Imperador com D. Amélia Augusta Eugênia Napoleona de Leuchtenberg, filha do príncipe Eugênio de Beauharnais e da princesa Augusta de Leuchtenberg, da Baviera. Para recordar: Eugênio era filho de Josephina, a viúva que Napoleão desposou. Napoleão adotou Eugênio e o queria seu herdeiro. D. Amélia era, portanto, um bom partido. As núpcias foram negociadas e realizadas no Brasil.
O grande feito de D. Amélia, pela crônica, é ter “domado” D. Pedro I: implantou no Paço um protocolo rígido, e as damas e cavaleiros que antes tinham acesso direto ao Imperador e a suas festas e andanças, foram praticamente proibidos de entrarem em seus aposentos. Tinham que esperar horas para serem recebidos… D. Amélia e sua mãe sabiam o esposo que teria, desde a negociação do casamento. Conto o cronista que ao chegar ao porto, D. Pedro a esperava com a corte, para juntos irem à Igreja para a cerimônia. No entanto, Barbacena chega à carruagem e diz a D. Pedro que uma das condições impostas era que D. Pedro somente ficaria sozinho com D. Amélia após o casamento… Então, D. Pedro teve que ceder seu lugar na carruagem a Barbacena, e foi sozinho no séquito da corte para seu segundo casamento…
- Amélia e a política
Retornado D. Pedro para Portugal, na batalha com o irmão D. Miguel, D. Amélia passou a viver em Paris com D. Maria II (a filha de D. Pedro, rainha de Portugal). Como se sabe, D. Pedro triunfou e mandou buscar a filha e lhe entregou o trono (como rei e com o nome de D. Pedro IV, reinou apenas de 26/4 a 2/05 de 1826!).
- Amélia acompanhou D. Pedro no infortúnio – ele se tornou imediatamente impopular, adoeçou e morreu pouco tempo depois, com 36 anos. Enquanto isso, reinava D. Maria II, “com seus quinze anos, loiros e frescos”. Frequentavam o palácio o príncipe Augusto (o único Duque do primeiro reinado no Brasil, irmão de D. Amélia), o mestre e filósofo conde de Nejaud e o Dr. Casanova, médico. Depois que o príncipe morreu, as relações entre D. Maria com sua madrasta D. Amélia esfriaram definitivamente, e esta se recolheu a uma vida pacata. Elas vinham em rixa e passagem atribuída por Paulo Setúbal a cronista chistoso merece leitura:
Frases soltas, revelavam quanto a rainha e a imperatriz divergiam na maneira de pensar. Por exemplo: D. Amélia gostava de usar vestidos pretos com muitos e altos bordados a ouro. Gostava de pôr brilhantes em profusão. D. Maria da Glória, não; e quando a via assim, costumava dizer:
– Aí vem a mamã sucumbida de enfeites.
A dissolução da constituinte
Esta crônica nos é apresentada como uma resposta à carta recebida pelo autor, assinada por um pseudônimo: “Um monarquista verdadeiro”. Trata-se da influência ou não da Marquesa de Santos sobre as ações de D. Pedro I. Setúbal havia escrito alhures que D. Pedro se deixara levar por Domitila. O missivista reclama e sai em defesa de D. Pedro dizendo que este jamais se deixou influenciar por qualquer das mulheres que seduziu…
Setúbal responde citando cronistas da época, com base nos seguintes argumentos: os benefícios e honrarias concedidos por D. Pedro aos parentes de Domitila; passagem das memórias de Vasconcellos Drummond: “A Domitila não foi estranha ao projeto de dissolução: ao contrário, era a representante assalariada pelos chamados republicanos desta conjuração.”; por fim cita um cronista da época, a respeito do uso de ramos de folhas de café pelos defensores da dissolução da Constituinte: “O imperador ornou o seu chapéu de um frondoso ramo de folhas de café. O mesmo fizeram os oficiais e generais. Villela Barbosa, posto não fosse militar combatente, também ornou seu chapéu de ramos de café. O mesmo fez Clemente Ferreira França. Até a Domitila ornou-se com um ramo exorbitante no peito”…
Um casamento retumbante
Esta longa crônica, provavelmente publicada em duas partes nos jornais, porque há numeração (I e II) para a sequência do enredo, refere-se ao esponsais (para usar um termo da época) do infante de Espanha, D. Pedro Carlos de Bourbon com a princesa D. Maria Tereza, filha de D. João e D. Carlota Joaquina. A descrição do anúncio de casamento é fantástica!
Nunca se vira coisa igual! O povo abria olhos tontos. De todos os becos, em chusma, corria gente num alvoroço. E toda a gente pasmava-se diante do bando. Era, realmente, um bando luzidíssimo o que lá ia, com rojão e música, pelas ruazinhas emosquitadas daquele pobre Rio de 1810. Que fausto! Os dos almotacés [termo antigo que referia os fiscais de pesos e medidas responsáveis pela taxação dos preços dos alimentos], anunciadores do pregão, vinham montados em cavalos brancos das cavalariças do rei. Ladeavam-nos, muito garridos, os oficiais da câmara, com as suas capas “bandadas de seda branca”, e os seus chapéus de plumas vistosas, rebrilhando de lantejoulas. Duas bandas de música. Atrás, um esquadrão de cavalaria. Vinham afinal, fechando o acompanhamento, “treze azêmolas [besta de carga] carregadas de fogo de ar” [fogos de artifíco]. […] Os almotacés, alto e a bom som, apregoavam o edital do rei:
– Desponsais do Sereníssimo Senhor D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, Infante de Espanha, com a Sereníssima Senhora D. Maria Tereza de Bragança, princesa de Portugal!
E lia o edital em que se anunciava ao povo, para o dia 13 de maio, a realização das bodas. O povo ouvia. Estrondavam palmas. A música rompia. Rojões de novo. E o bando, sob aquela zabumba, rumava para a Rua do Piolho.
A crônica segue com a narrativa das duas festas, a do casamento em si e depois aquela que ofertou aos esposos reais a cidade do Rio de Janeiro. Leitura extremamente divertida… e aparecem na festa da cidade os nossos hoje famosos “carros alegóricos”, cada um deles ‘ofertado” por grupos profissionais da cidade…
Mulheres na vida do Patriarca
Esta é talvez a crônica mais fofoqueira do livro!!! Recuperando nos arquivos da Biblioteca Nacional cartas de José Bonifácio de Andrada e Silva, patrono da independência, do tempo em que viveu no exílio em Talance (França) para seu amigo Vasconcellos Drummond, o cronista toma duas referências que faz José Bonifácio a duas mulheres: uma é Mademoiselle Franchette: “…Agradeço-lhe imenso o ter se avistado com a “minha antiga Franchette”. Está muito velha? Não o mostra a imaginação acalorada. Pobrezinha! Eu sou ainda muito sensível ao amor que me conserva…” E pede ao amigo que lhe dê cem francos!
A segunda remete a passagens de cartas que dão a entender que o Patriarca talvez tenha tido uma filha, Elisa. Escreve José Bonifácio: “Queira mandar esta a Madame Delaunay e procure ver com atenção a uma senhora que foi com ela visitá-lo cuja idade é de trinta e quatro anos e se chama Elisa. Veja se tem as feições que se pareçam com as minhas, ou com as de minha família. Mas tudo deve ser feito com “dissimulação e melindre”. Ofereça de minha parte à Madame Delaunay cem francos, que tudo será embolsado quando cá chegar”.
A maioridade
Com as sucessivas crises dos governos da regência (marcadas pelos partidos donde provinham os regentes), e com o recrudescimento das revoluções em busca da independência em várias províncias (a mais importante delas foi a do Rio Grande do Sul, a guerra dos farrapos, mas havia revolta em Alagoas, na Paraíba, em Goiás, na Bahia, no Maranhão), a então Câmara dos Deputados com mais afinco, e o Senado menos publicamente, buscavam saídas possíveis. Uma delas era a da “ditadura legal”, que aparece explicitamente em discurso do deputado Barreto Pedroso, parte do qual Paulo Setúbal transcreve dos anais:
Para provar que existia o pensamento de se querer uma ditadura, foi trazido aqui um artigo, no qual se dizia que as circunstâncias do país reclamam medidas fortes, excepcionais. O autor do artigo, diante disso, não tinha dúvida em aceitar a ditadura legal. Que quer isso dizer? Que o autor do artigo reconhecia bem que os nossos males públicos não se podem curar com as leis que temos, com essas nossas leis fracas e brandas. O epíteto – legal – unido à palavra ditadura, exclui tudo que possa haver de odioso nessa matéria. Ora, senhor presidente, eu confesso, sem medo, que é isso exatamente o que quero… (Grande sussurro na sala. Cruzam vozes). Direi aos senhores deputados: eu quero a ditadura legal! Quero a ditadura legal para evitar a ditadura despótica, a ditadura militar!
Para evitar uma e outra, movimento intenso se segue entre deputados e políticos da época, cria-se o Clube da Maioridade, e depois que o regente Araújo Lima decretou o adiamento por seis meses das atividades parlamentares, comissão do Senado e da Câmara foi ao encontro do rapazola (D. Pedro não tinha 16 anos!) sugerindo a maioridade. Segundo o diz-que-diz-que da época, o regente teria ido também ao Paço de São Cristóvão tentar manter o poder… alegando que o adiamento das atividades parlamentares era motivado pela necessidade de organizar os festejos de sua maioridade! E tendo perguntado a D. Pedro a partir de quando a desejava, ele teria respondido: – “Quero já!”. Sentou-se no trono dia 23.07.1840.
Uma audiência de D. Pedro I
A crônica se inicia com uma constatação: raramente nossos “pró-homens” escrevem memórias, o que nos deixa sem informações sobre os acontecimentos das cortes e da república. E então conta que num tal Mello Moraes encontrou, num emaranhado de memórias desconexas, a narrativa de uma audiência com D. Pedro I de uma deputação de Pernambuco, onde o presidente da província indicado pelo Imperador não foi aceito e houve revolta. A intenção era comparar os dois presidentes: o nomeado e o rebelde, para que o imperador tomasse sua decisão.
Os ministros e grande parte do Conselho eram contra que S. M. recebesse a deputação. Enquanto isso, os três representantes ficaram no Rio, sendo seguidos por espiões. Influentes no império, Francisco Martins, Chalaça e súcia queriam que todos fossem presos. Por fim, o imperador recebeu o grupo. E na conversa informou que decidira por um terceiro para presidir a província (uma saída salomônica?).
Quando o imperador reclamou dos pernambucanos que o traíram, um dos deputados quis defender os seus, se dá o diálogo:
– Mas, Senhor, permita V. M. que eu defenda os meus…
Mal tinha eu esboçado a frase, quando o homem, com os olhos chamejantes, pondo na boca o dedo indicador:
– Psiu! Psiu! Nem mais uma palavra! Ouviu?
Jeronymo Bonaparte
Esta longa crônica, publicada em duas partes, toma o acaso de o irmão de Napoleão chegar a Salvador em 1806 e pedir ajuda do governador para os tripulantes acometidos por escorbuto, além de pedido de água e víveres para falar, de fato, dos quatro irmãos de Napoleão: José, Luciano, Luiz e Jeronymo, cada um deles tratado com ingrato em relação ao glorioso irmão. Todos receberam benesses do Imperador francês: títulos e reinos. Todos se saíram mal em seus governos.
O interessante desta crônica é o conjunto de passagens em francês. Como se tratam de crônicas publicadas inicialmente na imprensa – como aparece na abertura do livro – e como não há tradução das citações em francês, isto significa que não se imaginavam leitores dos jornais, na segunda metade dos anos 1920, que não soubesse francês! E pensemos que a Semana da Arte Moderna foi em 1922 e que Macunaíma é da década seguinte. Saber falar, ler, escrever em francês era tido como “natural” nas classes abastadas que liam jornais naqueles tempos. O deslocamento da “cultura bem posta” do país do francês para o inglês (norte-americano) demorou ainda algumas décadas para acontecer.
Não resisto a transcrever um parágrafo da segunda parte, que trata dos salamalecos trocados entre o governador e o Príncipe Jeronymo. Este ofereceu um jantar, e o que segue é parte da descrição que dele fez o governador:
O jantar foi um primor. Magnificamente servido. As iguarias vieram todas de bordo. Houve muito beychevelle antigo e muito vinho branco de Anjou. Os criados, que eram os particulares do príncipe, traziam librés agalatoadas, calções com braguilhas de prata, meias altas de seda negra.
A transcrição fica por conta das “braguilhas de prata”!!!!
O sete de setembro
Nesta crônica o autor retoma os acontecimentos de São Paulo, para onde o Regente D. Pedro I se deslocou em função das lutas desencadeadas pela bernarda de Francisco Ignácio (movimento político-militar de 1822). Descreve com detalhes pitorescos o Ipiranga: É no Ipiranga. É à beira da estrada velha, junto ao ribeirão, rente de uma casinhola barreada. Paisagem tipicamente paulistana: descolorida e morta. Pelas lombas do morro, estirões de pastos ensapesados. Eitos de guaxuma. Vastos chãos de barba-de-bode crivados de cupis. Ali, sob o sol cru, sesteia um bando de cavaleiros guapíssimos.
O correio chegou, trazendo cartas de Portugal e de José Bonifácio, pelas mãos de Manuel Marcondes de Oliveira e Mello (Barão de Pindamonhangaba), Paulo Bregaro e Antônio Cordeiro. D. Pedro se atrasara por causa das sucessivas paradas em função de uma desinteria que o obrigada a todo momento prover-se.
Nada do imortalizou Pedro Américo. A declaração foi uma bravata entre amigos… e uma das grandes discussões dos historiadores com H maiúsculo, segundo Paulo Setúbal, foi descobrir se de fato andava D. Pedro em seu zaino, como disse Antônio do Valle em seu relato, ou se estava mesmo em sua bela besta baia, como relatou o Padre Belchior. O Barão de Pintamonhangaba, aos 80 anos, foi entrevistado a este respeito e respondeu que “o príncipe ia vestido com a fardeta de polícia e, se a memória não nos é infiel, cremos que cavalgava uma besta baia gateada”. Esta é uma crônica divertidíssima, e a gente pode ficar imaginando a cena comparando com o famoso quadro de Pedro Américo… A nossa independência parece ter sido proclamada com desinteria…
O enigma da abdicação
A questão bastante antiga na nossa história, é saber se D. Pedro I abdicou em função do motim de Sant’Ana, ou se o fez voluntariamente. O cronista aqui defende o ponto de vista de que a abdicação não só foi voluntária como planejada. Traz como argumentos: 1) o estado de espírito de D. Pedro a bordo do Warspite, onde gargalhava, tocava rabeca e outros pormenores como os cuidados com suas contas; 2) nenhuma ação do Imperador para debelar o motim; 3) o fato de D. Miguel haver destronado sua filha, D. Maria II em Portugal e sua vontade de lhe restituir o trono, como o fez em 1836; 4) episódio não comprovado de que a baixela do Paço já estava encaixotada para viagem, quando teve que ser aberta novamente para uma recepção; 5) o episódio ocorrido em Londres, no Natal de 1830, narrado por Vasconcellos Drummond instado a participar do movimento pela abdicação levada a efeito pelos liberais que ofereciam a coroa de península a D. Pedro, mas que assim que ganhasse a luta contra D. Miguel, seria também descartado [como foi de fato]. Desta crônica, retiro uma passagem que acaba por definir um destino deste país, a conciliação sem sangue traçada por cima, pela elite ou mais recentemente por liderança popular. A narrativa é de Cruz Lima:
Não há quem ponha dúvida que se o imperador quisesse, a seis de abril de 1831, resistir à revolução e combatê-la, teria de seu lado, pelo menos, uma parte dos fortes militares. Ninguém havia então, nem houve, depois, que não desse testemunho da coragem e bravura de D. Pedro I. Ele, porém, não quis apelar nem consentiu que se apelasse para o emprego da força armada. É verdade que não honra pouco a memória o ter poupado o sangue que se derramaria na capital do império e nas províncias. (grifos meus, afinal D. Pedro I abdicou; Getúlio se suicidou, Lula se apresentou)
O romance do Padre Vilhena
Conta como verdade… De 1580 a 1640 fomos colônia da Espanha, porque os Felipes governavam Portugal, trono exigido pela casa de Espanha quando se encerrou a dinastia iniciada pelo Mestre de Aviz, com o desaparecimento (morte) de D. Sebastião no desastre de Alcacer Kebir. Embora tenha sido sucedido pelo seu tio, cardeal D. Henrique, este era velho e faleceu logo. Assim, por 60 anos ficou unida a península sob um mesmo rei, o mesmo acontecendo com suas colônias americanas.
Quando a Espanha se viu enfraquecida pelas múltiplas exigências de conservação de seus domínios [e pelas rusgas com a Inglaterra, lembremos Brecht: “Chorou Felipe de Espanha quando sua esquadra foi a pique. Ninguém mais terá chorado?”], o conde de Bragança revoltou-se e se tornou D. João IV, rei de Portugal.
As novas foram trazidas para a colônia. Teria o rei encarregado o Padre Francisco Vilhena para tarefas melindrosas: acompanhar a comitiva que vinha à colônia para a proclamação de D. João IV como rei, trazendo nomeação de novos governadores, caso o governador de então, o Marquês de Moltavão, optasse por permanecer fiel à casa dos Felipes. Trazia também cartas escritas pelo rei a serem sobrescritas aqui e entregues aos fiéis vassalos de Portugal que viviam nos domínios da Holanda em Pernambuco.
Acontece de Montalvão, ainda que sua esposa e filhos que viviam em Portugal estivessem contra a dinastia de Bragança iniciada por D. João IV e os filhos tenham fugido para Madri, imediatamente se declarou – como português – vassalo do novo rei, proclamando D. João IV na colônia.
Chegado o Padre Vilhena, com todos os poderes e com toda sua ambição, verificou que as cartas que trazia de nomeação dos novos governantes eram inúteis pois somente deveriam ser usadas se Montalvão optasse pela Espanha. Não se fez de rogado, no entanto: chamou para conversar os nomeados e lhes entregou as cartas do rei. Montalvão é preso e mandado para Portugal como se tivesse sido infiel a D. João.
Como Holanda era inimiga da Espanha, houve acordo de paz entre Portugal e Holanda, o que teve repercussões na colônia, pois a Holanda dominava Pernambuco – invasão que fez precisamente em função de suas lutas contra a Espanha!
Uma comissão foi composta para ir a Recife e para elaborarem o tratado de paz. O Padre Vilhena pediu para ir junto: tinha o que lá fazer por pedido do rei! Pois foi, e vendeu muito cara cada carta de D. João IV, forrando seus baús com ouro. Embarcou para Portugal para usufruir de sua riqueza numa caravela de duas velas. Chegado à ilha da Madeira, muda-se com seus ricos baús para um galeão mercante para completar a viagem. Mas o galeão é assaltado por corsários argelinos que não só levam seus baús, mas também a ele mesmo que foi lá vendido como escravo.
xxx
Ao terminar de ler este livro, em que me diverti muitíssimo, fiquei pensando: trata-se de uma forma de fazer história? Ou de construir lendas? Seja como for, o cronista Paulo Setúbal vai a documentos, ironiza a história com H maiúsculo, traz elementos da vida cotidiana. Apesar de seu tom um tanto “fofoqueiro”, parece que temos aí as origens da história da vida privada… a história do cotidiano… ao menos neste Brasil. Teria a fofoca de estudiosos da história dado origem, quase meio século depois, à nova história???
Referência. Setúbal, Paulo. Nos bastidores da história. São Paulo : Cia. Editora Nacional, 1ª. edição, 1928.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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