Noite de espera, de Milton Hatoum

Este é o primeiro volume da trilogia O lugar mais sombrio com a qual Milton Hatoum retorna às narrativas longas, ao romance, depois de um longo intervalo. E este volume promete uma trilogia que ninguém poderá perder de acompanhar.

A história de Noite da espera é narrada por Martim, já exilado em Paris. De modo que o movimento cronotópico leva ao passado que recupera o tempo em Brasília, e ao presente em que se enuncia a história e em que os fatos são rememorados.

Filho de um casamento desfeito sem que o narrador tenha conseguido, até aqui, descobrir as razões, exceto que sua mãe (Lina) desvelou: não posso continuar a viver com seu pai (Rodolfo) e o que se tornou público para a família, estava apaixonada por outro homem, um artista, com o qual passou a viver. Da família da mãe, há ainda um tio (Dácio), fotógrafo e artista marginal, além dos avós (avó Ondina – que jamais aceitou tanto o tipo de vida do filho quanto a separação da filha – e o avô que permanecerá não nomeado, nem mesmo na carta em que Lina diz ao neto que seu avô tinha falecido).

Com a separação, Martim não fica nem com a mãe nem com o tio Dácio, alegando ambos que não teriam condições de sustenta-lo; e nem com os avós, em Santos. Assim, ele acompanha o pai (Rodolfo, engenheiro) que se muda para Brasília.

Toda narrativa é cruzada por dois temas: 1. o sentimento de abandono que sofre o narrador perturbado com a sensação contínua de que sua mãe sofre: Por que minha sofre? Por que eu penso que ela sofre? 2. A situação política vivida por estudantes e intelectuais durante a ditadura militar, particularmente no período que vai de 1968 a 1977, primeiro ano citado na narrativa a partir de Paris.

Este jogo entre estar em Paris contando como aí vive e se narrar estando em Brasília, em tempos tão tenebrosos, perambulando entre o Centro de Ensino Médio e depois na Universidade de Brasília como estudante de arquitetura, primeiro como novato que conhece o grupo a que pertencerá por acaso, no pátio da escola, recolhido e tímido, a que chega um grupo de artes cênicas para um ensaio dirigido pelo Porf. Damiano Acante.

Martim vive com o pai porque estão ambos no mesmo apartamento, mas não há qualquer comunicação entre eles! O pai é para ele uma sombra; o filho é para o pai um estorvo que precisa suportar e a quem se dirige deixando dinheiro para compras e a mesada num envelope. Para se ver livre e independente do pai, Martim consegue um emprego de meio expediente na Livraria Encontro, na Galeria do Hotel Nacional, de propriedade de Jorge Alegre. Esta livraria, espaço não só de compra de livros, mas também de um auditório em que se projetavam filmes proibidos pela censura da ditadura, acabará sendo fechada pelas forças da repressão, sem que Martim consiga conversar com Jorge Alegre para saber o que se deu e onde ele está.

O ritmo do romance é veloz. Transita-se da Asa Norte à Asa Sul, transita-se de Brasília a Paris. E o leitor acompanha numa e noutra cidade as andanças de um personagem angustiado porque parou de receber cartas da mãe – foram poucas as que recebeu desde a separação dos pais – cujo paradeiro desconhece. O ritmo da narrativa tem suas pausas nestas reflexões sobre a mãe e nas cartas que o narrador recebeu dela e nas que para ela escreveu.

No segundo movimento, o que se acompanha é a emergência de um grupo de amigos procedentes de diferentes grupos sociais, todos reunidos no campus da UnB. Há uma filha de senador comprometido com a ditadura de que é um dos líderes (Ângela, mística e poeta); há o filho de uma doméstica que reside em Ceilândia, praticamente na miséria (Lázaro); há um Nortista (Lélio) que recebe mesada curta do pai e que namora Vana, sobrinha de uma suposta Baronesa (D. Áurea) que vive das graças dos políticos, reunindo em seu apartamento tanto a situação quanto a oposição, ambas em busca do que ela oferece e que um militar (Zanda) traz de Manaus escondido em latas de doces, pó que o Nortista ajuda a distribuir aos consumidores do campus; Fabius, filho de um embaixador (Faisão) perseguido pela ditadura e recolhido de seu posto e estacionado em Brasília sem função alguma [“Vários diplomatas foram desligados do Itamaraty, meu jovem. Políticos e tecnocratas ocupam postos importantes na Europa e no mundo todo. Nossa diplomacia foi assaltada por esta gente”]; Dinah que namora Lázaro, mas que também namora Martim (o narrador), uma militante de esquerda filha de dois economistas engajados e defensores da direção que dá a ditadura ao “desenvolvimento econômico” brasileiro.

Financiados pelo embaixador Faisão, o grupo funda uma revista “de literatura e artes”, a Tribo. Nela publicam poemas, traduções de poetas franceses e norte-americanos, textos de literatura e sobre a literatura. Mas constantemente fugindo de tratar do que vinha acontecendo efetivamente no país, para crítica de Lázaro, talvez o militante político mais aguerrido do grupo, além de Dinah.

Quando o pai de Martim sai do apartamento para ir morar na Asa Sul, em novo apartamento, Martim vai viver com o Nortista, próximo ao campus da UnB, num quarto que este aluga de um casal de idosos. Desde então a questão de sobrevivência passa a estar presente no cotidiano de todos (com exceção de Ângela, Dinah e Fabius, todo o resto do grupo e outros colaboradores da revista, vivem o aperto nosso de cada dia).

Quando a repressão aparece explicitamente contra todo o grupo, o quarto do Nortista e de Martim é invadido pela polícia; eles ficam sem ter onde morar. O Nortista passa a viver na sede da revista Tribo, em que nem há chuveiro para um banho; por uma semana Martim passa a viver na casa de Fabius, num convívio constante com o embaixador Faisão que a estas alturas começa a ter problemas mentais causados pelo ostracismo e pela perseguição promovida pelo Itamaraty.

Num final de semana em que os pais de Dinah (os economistas) saem de Brasília, ela convida Martim para ficarem juntos no apartamento por três dias. Foram os três dias de amor… e por causa do amor, Martim se atrasa para uma reunião de edição da Tribo. Chove torrencialmente em Brasília, mas ele se dirige ao encontro atrasado, e ainda a um quarteirão vê as luzes acesas mas também o camburão para o qual estão sendo levados todos os seus amigos.

Retorna por desvios ao apartamento de Dinah, onde recebe um telefonema da Baronesa que lhe diz que as coisas não estão nada fáceis, que estava trabalhando para encontrar os prisioneiros, que havia contratado advogados e insiste que Martim deixe a cidade. Providenciou um carro Simca Chambord que o levou até uma praça de Goiânia, onde ele esperou anoitecer para comprar uma passagem e seguir de ônibus noturno para São Paulo…

E por aí se encerra esta primeira etapa de uma narrativa que se prolongará nos próximos dois volumes da trilogia. Como sempre, Milton Hatoum envolve o leitor que não consegue largar o livro enquanto não chega a seu final. E espalhadas ao longo da história, inúmeras passagens que exigem uma parada para reflexão.

Comecemos pelo fim, quando Martim está no ônibus para São Paulo: “Fugir é uma aprendizagem”. Ou ainda, pouco antes quando ele percebe que Dinah já não se encontra na cama em que dormiam: “Com a idade, máscaras diversas vão cobrindo o rostos das pessoas, até que uma, definitiva, não se descola mais da pele e dos olhos”.

No Bar Beirute, reunida a turma, à queima roupa, pergunta-lhe Ângela: “Com que rima a sorte, Martim? Com o amor ou com a morte?” Ou a reflexão do exilado, em Paris: “Talvez seja isto o exílio: uma longa insônia em que fantasmas reaparecem com a língua materna, adquirem vida na linguagem, sobrevivem nas palavras…

Rodolfo, o pai de Martim, abandou seu emprego da Novacap e com um sócio que não é explicitado, faz serviços provavelmente na exploração dos terrenos em torno do Eixo Monumental. Possivelmente seu sócio é o Senador, pai de Ângela, um dos que enriquece com o sistema. Rodolfo, homem de direita e defensor da ditadura, detesta a livraria: “Você ainda trabalha na Econtro? Não sabe que esse livreiro é vermelho é perigoso? Livreiro vermelho! O que Rodolfo sabia de Jorge Alegre? Meu pai não anda tão alheio à minha vida. Sem discrição (ou com discrição detetivesca) todos estão atentos à vida de todos. No silêncio da capital, rostos invisíveis vigiam e depois caluniam, acusam, delatam… “ (grifos meus)

Enfim, este é um romance que retoma o período da ditadura militar brasileira, torna-a o ambiente social em que viveram suas personagens. Desloca no espaço para o mundo dos exilados em Paris e para suas reflexões sobre um passado ainda recente para elas, um pouco mais distantes do tempo da enunciação deste romance que agora pode dizer o que então era proibido. Ele vem a calhar num tempo em que, aparentemente, com os pedidos de “intervenção militar” pode-se concluir que “civilização não é mesmo para o Brasil”.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.