No tempo dos cavaleiros da Távola Redonda

O historiador Michel Pastoureau, que abraça a perspectiva de recuperação da história da vida cotidiana, debruça-se neste livro sobre um período de mais ou menos 75 anos (de 1154, ano do início do reinado de Henrique II Plantageneta – Inglaterra – até a morte de Filipe Augusto, 1223, rei da França). Para apreender a vida cotidiana, o historiador dispõe de documentos, utensílios, móveis, alguma tapeçaria, retratos, brasões e… a literatura.

Pastoureau diz já na introdução:

… um lugar privilegiado coube à literatura cortês, e mais especialmente à arturiana, às obras de Chrétien de Troyes e seus continuadores. Por que esse privilégio? Porque essa literatura, longe de ser simplesmente recreativa, é uma literatura militante, que procura impor sua visão do mundo e da sociedade. Porque, dos meios que representa, ela oferece uma imagem ao mesmo tempo fiel e falaciosa, passadista e visionária, e que ao fazê-lo, pode proporcionar ao historiador ensinamentos mais ricos e matizados que um documento jurídico ou arqueológico.

Em seu estudo, vai traçando um desenho que permite ao leitor aprender – e se informar –  a respeito de um período histórico relativamente obscuro no que concerne ao conhecimento sobre o cotidiano. Ele dedicará seu livro ao estudo desta vida cotidiana, tal como levada pelos membros da pequena nobreza rural, de suas cortes, de seus castelos. E traçará os laços entre esta vida e as instituições então muito fortes: a Igreja e a vassalagem.

Inicialmente, considera o ritmo do tempo: o calendário pertence à Igreja, que define os dias de festas, os dias de trabalho, os dias possíveis para batalhas, os jejuns, os períodos em que o casamento era proibido (aliás, quando vai tratar dos “divertimentos” dos cavaleiros, seremos informados que a Igreja havia proibido não só os jogos (baralho, dados) mas também os torneios que eram chamados e organizados por algum nobre, fora de seu castelo, no campo aberto, e a que compareciam os cavaleiros organizados em grupos. Um torneio era também uma feira: tinha de tudo, ainda que a “batalha” fosse o centro da festividade. Para quem não conhece muito a história da Idade Média, como é meu caso, chamou atenção o fato de que o “duelo” entre dois cavaleiros, tal como vemos nos filmes, é muito recente. Antes, nos torneios, tratava-se de ‘batalhas’ entre grupos. E nestes torneios não havia qualquer pretensão de infligir a morte – ocorrendo, era acidental. Na verdade, o cavaleiro tentava capturar seu adversário e depois negociar sua liberdade. Foi deste sistema que viverão muitos cavaleiros e alguns chegaram a fazer fortuna.

Outra característica é a da hierarquia entre os civis: o sistema de vassalagem. Das terras não há, de fato, uma propriedade garantida. Ela sempre é uma concessão de um senhor mais poderoso, de modo que muitos dos pequenos nobres rurais, mesmo tendo seus castelos, não eram assim tão livres: devia vassalagem ao senhor mais poderoso que lhe concedera seus domínios. E a este senhor devia prestação de serviços, inclusive aqueles de guerras contra outros senhores, através das quais iam aumentando (ou diminuindo) seus domínios. Parece que sempre alguém é vassalo de alguém, vavassalos de vassalos, chegando ao rei que, no entanto, também ele tem que se impor e até mesmo lutar contra senhores de feudos nos limites do seu reino… Aliás, os domínios ingleses no continente, a variação destas fronteiras, se deve precisamente a este jogo de traição a um senhor e a vassalagem a outro senhor…

Os cavaleiros surgem deste meio da nobreza rural. Saem da casa paterna – ou porque sendo primogênitos, têm que aguardar o tempo para assumirem a herdade (embora frequentemente o feudo possa ser dividido entre os vários filhos), ou porque não herdarão e terão que “fazer a vida”. Não é o pai, mesmo sendo nobre e cavaleiro, que treinará o filho. Ele irá viver noutra corte, será aí sagrado depois de seu treinamento (tempo em que age como escudeiro de cavaleiros).  Eles formam um bando de homens preparados para a guerra, que não é frequente – as batalhas efetivas são raras. Andam de feudo em feudo, circulam, buscam aventuras, participam das caçadas dos senhores e vão aos torneios com o objetivo de fazer fortuna.

Outro aspecto que chama atenção é o emprego de brasões neste período. Na verdade, o que hoje chamamos de “família brasonada” como um sinal de distinção, somente se tornou isso muito mais tarde. No período histórico que Pastoureau estuda, qualquer um podia ter um brasão: desde trabalhadores especializados até o senhor do castelo… Em geral, os cavaleiros usavam em seus escudos os brasões do senhor que os sagrara, enquanto estavam em sua corte e participavam de sua vida. Mas outros, que acabavam enriquecendo e formando seus próprios grupos, desligavam-se destas referências de pertencimento para terem seu próprio brasão, suas próprias cores, seus “animais-símbolo”.

Obviamente há um capítulo dedicado às “realidades afetivas”, ao amor cortês, expressão “jamais empregado pelos autores medievais; eles se referem a boné amor, vrai amor e sobretudo fine amor”.

Numa sociedade em que, em geral, os casamentos são acertos entre pais e entre senhores, segundo interesses e alianças, não é o amor e sequer a atração física que costura o encontro entre marido e mulher. Claro que há muitos casamentos clandestinos. Talvez nosso exemplo clássico, mas muito posterior, seja aquele de Romeu e Julieta. Mas como a maioria dos casamentos é um acerto de interesses, a dama vive o tédio do castelo e a ausência de seu marido. E é cortejada pelos seus cavaleiros… que nem sempre visam a posse física (“Raramente se ama o que se possui”), o amor cortês se definindo sobretudo como uma “devoção do amante para com sua dama”.

Aqui, como diz o historiador

Como sempre acontece em história, quando se busca atingir as verdades da alma e do coração, os documentos são mudos. Neste domínio, é ainda a literatura que fornece as melhores hipóteses; mas não passam de hipóteses.

Assim, no Le Chevalier de la charrete” (Chrétien de Troyes, cerca de 1180),  a descrição do encontro de Lancelot com a rainha Guinevere nem há alusão à relação sexual, ela é claríssima:

Lancelot chega enfim ao que buscava: a rainha acolhe sua presença e seu desejo; ele a segura entre os braços; ela o segura entre os seus. A troca de beijos e carícias é tão doce que eles sentem uma alegria incomparável, uma felicidade como ninguém jamais conheceu. Mas do restante guardarei silêncio; são coisas de que não se deve falar. Os prazeres mais deliciosos são aqueles que o narrador não conta.

Como história da vida privada, não poderiam deixar de aparecer no estudo várias questões que fazem este cotidiano: a arquitetura da morada (do castelo, da casa senhorial, a do vassalo), as relações internas ao domínio – a pequena corte e os servos; a alimentação, neste período e entre os nobres, essencialmente carnívora (entre os pobres serão sopas com farinhas e legumes); o vestiário; os hábitos noturnos: dormem em grandes camas e normalmente acompanhados, numa mesma cama chegando a dormir oito pessoas; os serões familiares – nem sempre estes acontecem no salão, mais frequentemente são nos quartos; a hospedagem do viajante que sempre é bem-vindo porque altera o ritmo tedioso da vida no castelo.

E no final, para alegria do leitor, há seis episódios extraídos da literatura cortês! Nada melhor do que, depois de ler o historiador, chegar a partes do que foram suas fontes!

 

Referência. Michel Pastoureau. No tempo dos cavaleiros da Távola Redonda: França e Inglaterra nos Séculos XII e XIII. São Paulo : Cia das Letras : Círculo do livro, 1989.  

 

 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.