No meu tempo não era assim

Ouço a conversa entre duas professoras que falam sobre “a bagunça que é o Ciclo”, porque “eles colocam tudo na mesma sala… quem sabe com quem sabe um pouco, e com quem não sabe nada”.

Uma delas, em tom saudoso, diz:

 – Quando eu estudava a sala era assim, da primeira à quarta-série, tudo junto, mas cada fila era uma série.

A outra, completa:

– Mas, naquela época, aluno era gente e quando o professor estava explicando para uma fila, as outras estavam fazendo suas tarefas.

Curiosamente, elas continuam a conversa e uma delas começa a relatar que acabara de descobrir como integrar um aluno de sua classe seriada ao grupo, já que ele era muito fraco e indisciplinado. Segundo a professora, esse aluno demonstrava grande habilidade em trabalhos manuais e, por isso, o levara à condição de instrutor na construção de um mural temático para a escola. Ela afirma que, depois disso, o garoto passou a demonstrar grande interesse pelos conteúdos trabalhados em sala. A professora reforça que identificar potencialidades e criar grupos entre os alunos era sua estratégia favorita, já que neutralizava a indisciplina e um aprendia com o outro.

Toda essa conversa me levou a refletir sobre o quanto as denominações das práticas escolares são capazes de definir o olhar de seus sujeitos a respeito delas. Se uma classe é multisseriada, nela é possível haver aprendizado; mas, se é outro tipo de agrupamento, a possibilidade está, a priori, fadada ao fracasso. O que inquieta é o fato de que na escola, de tempos em tempos, há reformulações e novas nomeações que afetam a relação entre os sujeitos e a experiência concreta, de modo a criar uma recusa em se pensar que o ato em si não é algo já pronto e acabado e que, por essa razão, é necessário seguir avaliando possibilidades e escolhendo o que se quer alcançar.

Não há como negar que uma classe em que os alunos estejam no mesmo nível de aprendizagem é uma ficção que serve a controversos parâmetros avaliativos. Não há como ignorar que os diferentes estágios de conhecimento são proveitosos quando se tem como horizonte a possibilidade de aprendizagem com o outro.

Por outro lado, a experiência do aprender não está circunscrita ao espaço escolar, e os saberes não catalogados pelo currículo são igualmente fundamentais para a formação dos sujeitos. É nesse jogo constante entre a verdade objetiva acumulada e a verdade da experiência vivida que o cotidiano é reinventado.

Fazemos parte de uma história, em determinado ponto em que outro jamais esteve e, por mais que tenhamos em nossa memória rastros de uma suposta experiência ideal, estamos sempre revendo, refazendo e projetando algo a se alcançar. O que se faz é hoje, para hoje.

 

Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.  

Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.