Nos últimos dias tenho sido visitada pela lembrança de uma sensação experimentada quando há muitos anos atrás li Ninguém Escreve ao Coronel de Gabriel Garcia Marquez.
E como não estou presa, recebo as visitas que não se pode impedir. Eu e todos nós somos visitados, e não falo do sobrenatural.
Geralmente todos leem Gabo por seu livro mais famoso que é Cem Anos de Solidão, obra que talvez seja junto a Grande Sertão Veredas os melhores escritos latino-americanos.
Gosto da escrita do autor colombiano, acho-o merecedor de todos seus prêmios, mas volto-me a um dos seus livros menos afamado por vários motivos. A visita talvez aconteça pelo mote periférico do livro que é a sobrevivência de um casal de velhos que esperam o direito de aposentar e morrer com dignidade, tudo isso vai ficando muito próximo ao desejo encoberto de nossos governantes atuais de promover um reforma previdenciária que jogará, sobretudo os mais pobres e trabalhadores, na mendicância, na miséria absoluta até que a morte chegue.
Preciso confessar que voltei ao livro, parecia-me não suficiente às lembranças, então o li novamente, e a cada página entendia melhor o porquê do regresso às palavras, organizadas cuidadosamente, na narrativa do cotidiano moribundo do casal. É um livro sobre abandono.
Então não era só isso. Era preciso visitar meus fantasmas de compreensão e análise literária.
Não me levem a mal tampouco a sério. Aqui só caberão minhas sensações e divagações alucinadas. Enfim, deu certo.
E ela estava lá a sorrir generosamente com a boca escancarada. Encontrei-a facilmente oferecida e deslumbrante: esperança. Já velha e gasta, se apontava em cada grão de milho que os velhos tiravam de sua boca para atribuir ao galo Agustin. E ao se desfazer de seus próprios alimentos, bem como de todo o resto: roupas, saúde, remédios, pagar a hipoteca da casa, móveis que vão vendendo ao longo da narrativa vamos pensando que era a única coisa que poderia ser feita afinal. É preciso ainda pensar que os tempos são duros, existe uma ditadura em vigência. Assim, a expectativa de dias melhores vai se configurando em uma tortura, silenciosa e imobilizadora capaz de cegar e de adoecer toda a sociedade.
Durante a narrativa percebemos que a esperança é compartilhada por todos os que se opõem aos ditadores, ansiosos de que um galo seja capaz de fazer nascer um novo amanhã – como poetizou Cabral de Melo.
Um galo.
– É um galo que é dinheiro em caixa – disse ele. Fez cálculos enquanto sorvia uma colherada de papas. – Vai dar-nos de comer durante três anos.
– As ilusões não se comem – respondeu ela.
– Não se comem, mas alimentam – retorquiu o coronel. São uma coisa assim como as pastilhas milagrosas do meu compadre Sabas.
Dormiu mal essa noite, tentando riscar números de cabeça. No dia seguinte ao almoço, a mulher serviu dois pratos de papas de milho e consumiu o seu de cabeça baixa, sem pronunciar palavra. O coronel sentiu-se contagiado de um humor sombrio.
Durante muito tempo foi possível crer que um galo, na sua expressão de rebeldia e arte, acordasse outro, que acordasse outro e outros sucessivamente e até que tantos galos quanto possíveis e impossíveis fossem donos de cada dia, e assim o reino estaria de pé. Espinha ereta. E talvez estivéssemos errados, supor que as pessoas fizessem um tecido de muitas cores e contornos, muitas vozes, e cantos que alimentassem manhã de luz e poesia, diante da dureza e da aridez da vida.
Gabo meu querido, você está certo. A esperança não pode ser oriunda do verbo esperar. Sem ação e apenas imolação torna-se-á um castigo de vida em morte.
Assim um abandono de nós mesmos. Provocado, e produto de tantos mandos e desmandos, e de principalmente de não se fazer nada. Alguém entenderá do que falo, ou estarei abandonada em minha inquietações.
Ao invés de acordar, morresse a cada dia.
Durante o conto o personagem descreve o clima temporal como outono, e com caracteriza o ambiente como úmido e sem calor, estes são restritos as febres dos personagens, no mais só frio, constipações, asmas, goteiras por toda a casa e como se mofassem por dentro, tornam se incapazes ou incapacitados de agir sobre seus destinos.
Em um dado momento as personagens conversam sobre a perda da dignidade. É um diálogo dos mais comoventes que podemos imaginar totalmente possível nas casas dos pais e mães de família de nossa sociedade, esses que encontram-se sem o mínimo para a dignidade, humilhados pelo desemprego, pela fome dos filhos e filhas, pela falta de moradia, pela ausência de saúde e pelo fim dos direitos: trabalhistas, previdenciários, e humanos.
Tornaram-se os próprios galos. Nas rinhas entregues ao destino de morrer matando-se uns aos outros.
O coronel deixou a candeia no chão. Começava a sentir-se esgotado. Apetecia-lhe esquecer-se de tudo, dormir de seguida quarenta e quatro dias e acordar a vinte de Janeiro às quatro da tarde, no pavilhão dos galos e no momento exato de soltar o seu galo. Mas sabia-se ameaçado pela vigília da mulher.
– É a mesma história de sempre – começou ela uns segundos depois. – Nós passamos fome para que comam os outros. É a mesma história desde há quarenta anos.
O coronel guardou silêncio até que a mulher fez uma pausa para lhe perguntar se estava acordado. Ele respondeu que sim. A mulher continuou num tom franco, fluente e implacável.
– Toda a gente vai ganhar com o galo, menos nós. Somos os únicos que não temos nem um centavo para apostar.
– O dono do galo tem direito a vinte por cento.
– Também tinhas direito a que te arranjassem um lugar quando te punham a dar couro e cabelo nas eleições – replicou a mulher. – Também tinhas direito à tua pensão de veterano depois de arriscares a pele na guerra civil. Agora toda a gente tem a vida assegurada e tu estás morto de fome, completamente sozinho.
– Não estou sozinho – respondeu o coronel.
É o destino dos que não lutam. E muitas vezes dos que lutam também que é para servir de exemplo.
É certo que mataram seu filho. Agustin morreu jovem. É um símbolo. Como a juventude pobre, sobretudo a negra tem sido.. Matam a juventude que ousa se rebelar. Agustin estava no local errado, o erro era distribuir panfletos numa rinha de galos. Panfletos revolucionários e proibidos. Descobrimos nas entrelinhas do texto que muitas coisas são proibidas, o padre se encarrega de fazer a classificação etária e a vigilância dos filmes exibidos.
O coronel sentiu-se ofendido.
– Isso é uma verdadeira humilhação – comentou.
A mulher abandonou o mosquiteiro e dirigiu-se para a cama de rede.
– Estou disposta a acabar com os fingimentos e as contemplações nesta casa – disse. A sua voz começou a turvar-se de cólera. – Estou mais que farta de resignação e de dignidade.
O coronel não mexeu um músculo.
– Vinte anos à espera dos sapatos de defunto que te prometeram depois das eleições todas e de tudo isso só nos resta um filho morto – prosseguiu ela. – Nada mais que um filho morto.
O coronel estava habituado a esta espécie de recriminações.
Ao ler somos imersos em uma atmosfera de reconhecimento do desconhecimento e da desesperança.
As pessoas não entenderam nada, no lugar de lutar pela justiça, por seus direitos, pela vida do filho… Invertem os valores e tomam-lhe o galo nas mãos como única herança. Todos os símbolos negados, então mergulhados em negações e privações agarram-se a sua própria condenação: a espera do dia que haveria de chegar.
Essa maldita espera de algo que não virá.
* * *
Quando comecei a escrever este texto, antes mesmo de digitar as primeiras palavras tinha um objetivo. Ele está escondido em meio ao texto. O tempo não é ainda de vigilância e repressão extrema, e ainda assim escondo muito do que digo em metáforas mal construídas.
É também um pouco do que acredito: não é preciso entregar as coisas todas de bandeja, envolvidos em reflexões e leituras todos podem acessar suas próprias construções de leitura. É a grande teoria que diz que a leitura se realiza no leitor.
Então Lula é o Coronel. É o galo. É a esperança. Pode não ser nada disso também. E seja só ausência, falta e abandono.
Muitas são as cartas possíveis. E elas existem e continuarão a existir, se pudesse escreveria uma carta curtinha assim:
Querido Lula,
Que nosso povo liberte o galo aprisionado,
Chegará ao fim o outono e o inverno, Passaremos.
Não é sonho, eu sinto que ninguém conseguira deter a primavera e tampouco o cantar do galo,
Que esse canto tome outro galo, que tome outro ainda, e mais outros tantos.
E que as manhãs que cada galo anuncie sejam de esperança e poesia.
Mara
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
Marita querida, obrigado por falar de esperança e poesia.
Lindo texto amiga! Vc nos representa. E como disse Marquinho nos dá esperança!
Maria Tereza,
obrigada pelo carinho da leitura, pelo afeto.
Nesses tempos é preciso antes de tudo afeto para a caminhada.
um abraço.
Querido Marcos,
que bom que você leu, escrever também nos deixa mais valentes, e o desejo é que a vida tenha sempre cores, esperança e poesia.
Sem elas, nos tornaremos robôs ou como diria Marcelinho: “Zumbis”
um beijo e nos acompanhe sempre
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