Hoje é dia de Natal. Uma manhã quieta, serena, de incômodo silêncio. Manhã de sono prolongado, silenciada, talvez, pelo excesso de festas exuberantes, de extravagantes custos. Manhã silenciada pelas alegrias efervescentes e barulhentas em interiores exóticos, iluminados por mil luzes de múltiplas cores – ou manhã de Natal silenciada pela falta absoluta de alegria em grande parte dos lares. Manhã de Natal silenciada pelo excesso de algazarra das crianças, abrindo pacotes de brinquedos elétricos-eletrizantes-eletrônicos, todos já prontos e programados-automatizados-robotizados para encantar os pequeninos – diferentemente aos milhões de crianças sem presente nenhum para se encantar. Bonecas mecânicas que falam, riem, choram, cantam, tocam músicas, bonecas mágicas que encantam crianças e adultos; caminhões, trens, máquinas, aviões, carrinhos em miniatura, que andam, viram cambalhotas, correm em trilhos e pistas, voam, comandados por controles eletrônicos, guiados por botões sob a pressão inteligente de dedinhos infantis. É uma manhã de Natal lenta, sonolenta, um tanto tristonha e preguiçosa, silenciada pelos efeitos da quantidade e variedade de bebidas alcoólicas e líquidos gaseificados, ingeridos pelos corpos adultos e infantis, desmesuradamente. Manhã silenciada pela extravagância de comida natalina – ou pela falta absoluta de alimentos vitais para a massa de pobres – alimentos engolidos de uma vez só por bocas vorazes e depositados em estômagos dilatados. Manhã de Natal silenciada pelos estampidos e estrondo de bombas festivas, explodidas para acalmar as mágoas e as tristezas do dia a dia da vida sofrida. Uma manhã de Natal quieta, silenciada, por força de que mais?
A meia-noite de Natal já foi. Já se foram os abraços apertados, prolongados, delicados, amorosos, de afeto contido ou magoado; os beijos de Natal, não importa se verdadeiros ou falsos, também se foram. Agora, quem sabe, só no próximo Natal. Os amigos secretos (e os presentes tão esperados) já não são mais secretos, se revelados. Se o presente foi generoso e precisamente o presente esperado, então a alegria é plena e o amigo será amado de verdade. Do contrário, se o presente foi módico, displicente, então o amigo é decepcionante e menor. E como foi a alegria daqueles sem presente algum? A propósito, é possível haver alegria de Natal sem presentes?
Ainda é manhã de Natal. Olho, da janela do meu apartamento no sétimo andar do prédio, e vejo o mundo vazio. E me pergunto: onde estão as massas de compradores, consumidores, de clientes? Para onde foram as multidões agitadas, apressadas, indo e voltando, vindo e retornando pelas ruas, avenidas, praças? Onde foram parar as pessoas que na véspera de Natal entravam e saiam das galerias, dos shoppings, das lojas de vitrines todas enfeitadas de papais-noéis, de estrelinhas e bolas douradas e coloridas, com pacotes dependurados nos braços, nas mãos, nos ombros, no peito e nas costas? Onde se esconderam os milhares de papais-noéis, com suas barbas brancas, gorros e roupas vermelhas, de botas de enfrentar a neve das montanhas em dias de pleno verão? Novamente me pergunto: qual o papel do papai-noel na sociedade de consumo de massa? Seria o papai-noel um ator ou uma mercadoria? Um trabalhador fantasmagorizado de velhinho bondoso, carinhoso, amante das criancinhas? Ou um vendedor excepcional mal remunerado?
Nesta manhã de Natal, os atores papais-noéis sumiram do cenário – ruas, praças, avenidas, marquises – e com eles sumiram os espectadores da plateia – consumidores compulsivos irrecuperáveis-incontidos-irremediáveis. Fico triste por isso? Nem tanto. Talvez aliviado. Os papais-noéis sumiram também da TV e com eles o mundo de propagandas fantasmagorizadas de felicidade. Aqui sim há alívio.
E para onde foi o Menino Jesus recém-nascido? Certa ocasião, uma criança ao deparar-se diante da árvore de Natal em sua casa, recém montada e ornamentada com estrelas e bolas douradas e prateadas, com anjos de Natal, gordinhos, de bochechas rosadas, cabelos loiros e caracolados, infinidades de pequenas lâmpadas de luzes multicoloridas e uma montanha de caixas e pacotes de presentes, perguntou: “mamãe, onde vamos colocar o presépio com o Menino Jesus”? A mãe respondeu: “filha, nesta árvore de Natal, tão linda, cheia de brilho e de luzes, não há lugar para o presépio, tão pobre sem luzes na escuridão da noite. Você precisa entender que o Menino Jesus nasceu numa estrebaria entre animais e foi deitado numa manjedoura – prato em que se põe comida para os animais – sobre resto de palha e feno – comida seca para animais. A mamãe Maria e o papai José não tinham casa, plano de saúde, ginecologista, bercinho, roupinha macia e quentinha para o filhinho Jesus, então deitaram Ele na manjedoura, chamaram as vacas e os jumentos para bem pertinho aquecer “Jesus com o bafo”. Ao ver a filhinha triste com esta triste história, a mãe falou com severidade: “filha, esquece o presépio, esquece o Menino Jesus. Lembra-te do Papai Noel, que lhe trará um montão de presentes. Aqui, na nossa árvore de Natal, não há lugar para menino pobre e nem para sua família”.
Assim, no Natal de hoje, não há mais espaço e lugar para a celebração do sentido sagrado da vida. Natal, então, como tudo na vida, virou mercadoria. A vida foi reduzida às coisas minúsculas e banais.
Agora já é meio-dia. Nada de novo para o almoço de Natal. Para aqueles que celebraram a ceia de Natal, comida requentada. Para aqueles sem ceia, comida de sempre, pouca e sem tempero. À mesa, pouca conversa.
Chegou a tarde de Natal. Já respiramos a aura do fim do Natal. A tristeza paira na vastidão do horizonte, anunciando 365 dias para o próximo Natal. As crianças, exaustas de operar os novos brinquedos, estão irritadiças e choronas. As pessoas grandes, aborrecidas ao se lembrar das contas que terão que pagar nos próximos meses.
Ao entardecer do dia de Natal, é hora das despedidas dos parentes e amigos. Muitos “obrigados”, muitos “pedidos de desculpas”, muitos convites para próximas visitas e abraços breves e sem muito entusiasmo. Então, é o fim do dia de Natal. O sol, já no horizonte, com seus raios sem muita intensidade, brilha, anunciando o fim de mais um dia cósmico. Exatamente o dia histórico de Natal e o fim de mais um dia de existência de cada um que viveu este Natal. As nuvens vermelhas anunciam estiagem para os próximos dias. O esplendor de uma tarde de Natal está esfumaçado de melancolia. O tédio retornou num nível mais elevado.
Assim, termino essa crônica natalina. Conversas comigo mesmo sobre o dia de Natal, escritas ao longo do dia de Natal.
Professor, pesquisador, escritor
José Kuiava é Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp (2012). Atualmente é professor efetivo- professor sênior da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Planejamento e Avaliação Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: autobiografias.inventário da produção acadêmica., corporeidade. ética e estética, seriedade, linguagem, literatura e ciências e riso.
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