É o caos a ignorância.
Uma pessoa morre em meio a um desfile. Um corpo na passarela atrapalhando o tráfego do bem viver. Os expectadores recebem muito mais do que foram ver, a morte ao vivo e a cores. Em preto e branco já estamos acostumados: são oitenta tiros ou fogos de artifício de uma festa particular. Espetáculo da naturalização da falta de humanidade. Intervenção negra de alguém que grita que ninguém devia estar ali, que o garoto tinha acabado de morrer. Ouvem-se então eufóricas palmas anestesiadas. Ignoram duplamente.
Clap, clap, clap. Reproduz o som das palmas. Não é verdade, é falso. As minhas não soam assim. Já o silêncio não tem reprodução. Não ouvimos os tiros que matam as vidas nas favelas, não ouvimos os gritos de Martin, Malcom ou Mandela. Insistimos em novas artimanhas que nos mantenham sentados como a platéia Fashion Week: curtir, compartilhar, fotografar, tuitar, trending topics, lacrar, viralizar.
Em meio aos convites, fotos e receitas, as pessoas convidam a lutar sem dizer quais estratégias devem ser usadas para barrar o avanço sobre os corpos de mulheres à disposição do turismo sexual, aos casos repetidos de feminicídio, aos assassinatos e violências contra pessoas trans, homo e ltgbt, racismo, intolerância religiosa. E negros sendo alvejados de balas. São alvos fáceis, construídos pela força de uma mídia que repete a exaustão que aqueles locais são violentos, que as pessoas moradoras daquela região sempre têm culpa do mal que recebem. São alvejados cotidianamente pelos programas que fazem um balanço geral de suas mazelas, e o resultado apresentado aos berros: é que precisam ser extirpados da sociedade.
– Tem que resolver isso, taokey!
Alvejados, cada vez mais claro. Corpos negros descoloridos e pintados de bandidos. Ignoram seus destinos já desenhados pela mão do grande irmão. Um povo em decomposição, lavados em água sanitária e sabão. Sem contaminação. É quase um rap, é nóis! Nossas consciências seguem ainda mais limpas.
É dia do trabalho, feriado. Ignoramos que a força que movimenta e produz sai de nossas mãos. Os corpos seguem exaustos, e ainda nos alegramos. Tem show. Repito a poesia de Pessoa que sempre me incomoda:
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
(Fernando Pessoa. Ela Canta, Pobre Ceifeira – in “Cancioneiro” )
Descobrimos que a leitura, e o prazer que adviria tornou-se mera bisbilhotice pelo cotidiano, ou ainda pelo que vem pronto e embalado pelo circuito midiático convencional. As mentes processam sem eficiência a quantidade de notícias que se sobrepõem velozmente. Ignoram tudo para a make perfeita e a selfie que brilha.
Leitores medíocres. De manchetes e poucos caracteres. Muitas vezes escondem-se em círculos acadêmicos ou intelectuais deixando passar ao largo e longe a importância de aprender e ensinar, do conhecimento que instrumentalize a transformação. Ignorância vaidosa que não explica que todos os pobres e velhos cairão mortos nas passarelas sem aposentar-se.
Não tem eficiência textual que dê conta do recado necessário, nem mesmo volume de compartilhamentos que aplaque a sanha do mercado em impor sua narrativa multifacetada, para isto entregam textos cada vez mais patrocinados, capazes de cansar cada vez mais o poder de reflexão, e tornar as pessoas cada vez mais manipuláveis, sem sequer precisar do discurso. Sem foco, sem direção ou projeto de texto. A leitura é pesada para os dias amenos de feriado e fins de semana.
Não há estranhamento.
Elegeu-se não contraditoriamente um sem discurso, sem leitura, sem compreensão dos problemas vários e profundos que permeiam o país. O avesso a filosofia chega com a mesma propriedade que o molho Cury alimenta, emocionalmente, os profissionais da educação. Em banquete que cabe pílulas mágicas de autoajuda e os coach. Também ali jaz Paulo Freire, cada um recolha seu próprio lixo já dizia Malcom X.
E a poesia se afasta e ri de nós. Permita-me ignorar e continuar sentada sem de nada discordar, rir e cantar. Ceifando o conhecimento, a reflexão, a insurgência. Matando as vidas que pulsam e insistem em seguir. Ainda assim escolheria não ignorar sem assumir os riscos.
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
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