Antigamente, bem antigamente, era comum assustar meninos ameaçando com monstros! Quando era criança, nosso ‘monstro’ era a Velha Cancorosa. Na verdade se tratava de uma senhora, bastante alta, descendente de escravos, que conhecia os segredos das plantas. Andava pelos bairros da cidade vendendo chás: folhas, raízes, flores secas. Cada coisa servia para algo.
Carregava tudo dentro de um saco branco! Alta, preta, com um saco: nada melhor para assustar menino. Sempre que me ameaçavam, corria a me esconder. Mas um dos meus irmãos, de quem lembro sempre sentado naquelas cadeiras altas de comer, sempre choramingando sem dor ou fome, quando o ameaçavam com “Olha! A Velha Cancorosa vem aí te pegar!”, ele aumentava o tom do choro manhoso gritando: “Eu quero a Velha Cancorosa… Eu quero a Velha Cancorosa…” E aí não tinha jeito mesmo, era deixar chorar!
Pois não é que os monstros voltaram! E andam à solta por toda parte, dando declarações. Um destes monstros, a que podemos chamar de “Imbecilidade Encarnada”, anda assustando ingênuos. Ataca sempre. Não se sabe bem o que vai atacar naquele momento, mas já se sabe que é monstro de ataque, monstro de rinha.
A Imbecilidade Encarnada tem horror ao pensamento, à crítica, à filosofia, à sociologia, ao jornalismo sério. Quem anda por estas áreas são focos ‘preciosos’ para o monstro. E ela, a Imbecilidade permite ir colecionando suas rinhas e ranços. Por ora, ainda ataque palavroso. Mas um dia a Imbecilidade conjugada a sua familícia, atacará de forma mais firme, assim que o monstrinho de Curitiba conseguir aprovar a autorização de matar, porque a Imbecilidade gosta mesmo é de sangue. Então fiquemos que com nos oferece hoje, prevenidos para com o amanhã:
- O presidente da República, Jair Bolsonaro, chamou de “energúmeno”o educador Paulo Freire nesta 2ª feira (16.dez.2019). A frase foi dita em frente ao Palácio da Alvorada, durante a manhã, a apoiadores. O presidente defendia o fim do contrato do Ministério da Educação com a Associação Roquette Pinto, gestora da TV Escola, anunciado na última 6ª feira (13.dez). “Era uma programação totalmente de esquerda, ideologia de gênero”, disse Bolsonaro a respeito da TV Escola. “Tem 1 monte de formado aqui em cima dessa filosofia aí, de 1 Paulo Freire da vida aí. Esse energúmeno aí. Ídolo da esquerda.” https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-chama-paulo-freire-de-energumeno/
- Esta é de 03.01.2020. (A gente nem tinha acordado das festas, desprevenidos recebemos o choque da Imbecilidade Encarnada):
“Devemos buscar cada vez mais facilitar a vida de quem produz, fazer com que essa garotada aqui tenha um ensino que vá ser útil lá na frente. Não ficar nessa historinha de ideologia. Esse moleque é macho, pô. Estou vendo aqui, o moleque é macho, pô. E os idiotas achando que ele vai defender o sexo aos 12 anos de idade. Sai para lá”, afirmou o presidente.
“Tem muita coisa, até a questão de livros, botei uma matéria ontem, já começa a mudar alguma coisa. Mas tem livros que eu vou ser obrigado a distribuir esse ano ainda levando-se em conta sua feitura em anos anteriores. Tem que seguir a lei. A partir de 2021, todos os livros serão nossos, feitos por nós. Os pais vão vibrar. Vai estar lá a bandeira do Brasil na capa. […] Vai ter lá o hino nacional. Os livros hoje em dia, como regra, são um montão de amontoado de muita coisa escrita. Tem que suavizar aquilo. Em falar em suavizar, estudei na cartilha ‘Caminho Suave’, você nunca esquece. Não esse lixo que, como regra, está aí. Essa ideologia de Paulo Freire”, acrescentou.
- E o recente ataque deste 06.01.2020:
“Quem não lê jornal não está informado. E quem lê está desinformado. Tem de mudar isso. Vocês são uma espécie em extinção. Eu acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente]. Vocês são uma raça em extinção”.
Mas ninguém leva muito a sério a Imbecilidade Encarnada, porque sabe que são imbecilidades… acontece que enquanto este monstro vai largando seus petardos verbais, o clima e o tempo ficam livres para os monstros auxiliares irem jogando o jogo sério: o fim de qualquer risco de democracia nas universidades; o fim dos direitos sociais, o sucateamento de todas as instituições de serviço público e a doação, por preço módico e bom colheita noutros setores mais recônditos, de todo o patrimônio nacional, tudo patrocinado pelo monstro sagrado, o Sr. Paulo Guedes, enquanto se movimenta o monstrinho desmoralizado tentando conseguir autorização para sua polícia matar à vontade (como ainda não conseguiu, para manter a fidelidade dos cães, o monstrinho desmoralizado conseguiu um aumento de salário para a cúpula de sua polícia, um modo de manter a boca cheia enquanto não vem a autorização desejada).
Estas imbecilidades todas me lembrou fatos passados, não só de ‘monstros de susto’ mas também de posições bem comportadas: quando houve a mudança de governo, saindo do neoliberalismo de FHC para o primeiro governo Lula, havia o Programa Nacional do Livro Didático. Imediatamente os acadêmicos que davam pareceres sobre os livros didáticos, faziam as listas dos adotáveis, saíram a campo defendendo que o PNLD era uma política de estado e não uma política de governo!!! Com medo de perder “os contratos e convênios”… defendeu-se uma política governamental como política de estado. E saíram ganhando, não só nenhuma mudança no PNLD, mas também ganharam a continuidade das assessorias no novo ministério, agora petista! Não sei como andam os mesmos acadêmicos acostumados aos corredores dos palácios… certamente ficaram com Dilma (e Fernando Haddad), continuaram com Michel Temer e devem andar às voltas para conseguir argumentos do tipo “política de estado” para estarem lado a lado da Ignorância Bípede, conhecido por Abraham Weintraub.
Mas a surpresa maior me veio de uma entrevista com Luiz Fernando Veríssimo, publicada por Roberto Dias, na Folha de S. Paulo (06.01.2020) em que se faz um jogo: o entrevistador expõe situações atuais para o entrevistado responder como agiriam O Analista de Bagé e sua secretária Lindaura. A surpresa fica por conta da aproximação, feita pelo jornalista, entre “fake News”, este nome pomposo para “mentiras” e a ficção literária. Anotem as perguntas e respostas do escritor:
- Quando as fake news ganharam a visibilidade atual, imagino que o sr. tenha pensado algo como “bem-vindos ao meu mundo”. As fake news chegaram a ser engraçadas para o sr.? Se sim, deixaram de sê-lo? Quando? Na medida em que são formas de ficção, as fake news requerem alta dose de criatividade para competir com as news de verdade, estas sim, frequentemente incríveis.
O Bolsonaro e alguns dos seus ministros são claramente figuras do realismo mágico, mas reais.
Voltando às fake news: elas são literatura? O que as aproxima ou as distancia disso? As fake news que funcionam como fatos falsos e mentiras convincentes obviamente fracassam como literatura.
A simples aproximação entre as mentiras e a literatura, aproximação esta baseada na questão da ficção, assusta! Certamente a literatura não trata do real, não é um reflexo do real, mas sim um real deste reflexo, como disse um dia Badiou. Como as fake News são mentiras, muitas delas mentiras deslavadas, como pode um sujeito que exerce função intelectual, que é um jornalista, aproximá-las como se fossem do “mesmo mundo”?
Estes dois tipos de monstruosidades (fake News postas no campo da literatura, e programas de governo se tornarem política de estado por interesse ‘acadêmicos’) são menos visíveis, mas muito mais assustadoras do que os monstros e monstrinhos que nos governam e nos assustam diariamente.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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