Minha rua tem um pé de goiabeira

Há pouco tempo, quando frutificou, aprendi que temos uma milagrosa goiabeira bem próxima de casa. Seu milagre é simples, como o milagre de todas as goiabeiras não abençoadas pela pastora que está de ministra, mesmo sem ter qualquer importância como disse publicamente seu chefe maior: consultou-a mesmo ela não sendo importante.

Jesus não subiu nesta goiabeira. Certamente a admira de longe como mais uma obra da criação de sua natureza. Mas ela traz alegrias, não choros. Os meninos passando para a escola, as meninas voltando da escola: chacoalham-na para colher seus frutos. Na maioria das vezes chegam atrasados. Os passarinhos chegaram primeiro, bicaram-nas e alimentaram-se: canários da terra, rolinhas. Pardais, será?

Indefesa, à noite alimenta morcegos. Morcegos negros. Os meninos e as meninas, atrasados, reconhecem as mordidas, abandonam a fruta ao pé da goiabeira. Elas apodrecem e se tornam seu adubo. Ela mesma reproduz a vida: alimenta vermes e se alimenta das sobras.

Se ninguém cortá-la, se ninguém a destruir, a goiabeira continuará ali, viva. Alimentando e se alimentando. Durante seu ciclo histórico.

Assim também, alimentando-se do que se acumulou no ventre da Terra ao longo de muitos séculos, outra ‘goiabeira’ cresceu e se tornou energia graças ao engenho humano, ao trabalho forçado e inteligente de muitos homens e mulheres. E pôs galhos, enormes galhos com frutos diversos. Em parte, energia que move motores; em parte, utensílios em plástico; em parte, move engenhos voadores… seu produto tem mil e uma utilidades.

Pois esta goiabeira assim imensa fez e faz a alegria de muita gente, porque move uma corrente de produção do que precisa para frutificar. Gerou alimentos indiretos para muita gente, mas definha.

Quando os corvos começaram a voar em seu torno, comprometidos em destruí-la transferindo seu ventre negro para outras paragens com as quais estão os corvos comprometidos, nossa grande goiabeira começou a definhar. A cadeia que movia começou a parar. Portas fechadas, lacradas para o bem dos corvos.

E eis que nos escondidos recintos, à socapa, à noite, um corvo de primeira estância secundado por um traidor comprometido apenas com a minoria dos sócios de nossa goiabeira, assinam um acordo não acordado com os donos da goiabeira. Pelo acordo, os corvos de primeira estância ganhariam uma baleia de 2.500 toneladas; e o traidor comprometia a goiabeira que, a partir de então, tinha por obrigação informar todos os caminhos pelos quais suas raízes passariam, todas as descobertas destes caminhos, todas as inovações conseguidas pelo esforço e inteligência – que o outro lado do acordo não tem – daqueles que se carpem, adubam, alimentam e fazem a goiabeira ser o que é!

Esta sim é a goiabeira milagrosa: desfolhada quando em plena atividade produtora, continuou dando resultados, dando seus frutos e empurrando a corrente que movimentava. Por causa destas folhas, arrancadas às escondidas, vieram os corvos salvadores arrancar-lhe os galhos, com esforço e mentiras, cortaram-lhe muitas das raízes. Auxiliados por um traidor de lesa-goiabeira, exigiram seu quinhão. Veio em forma de baleia tão pesada que espantou: uma baleia deste tamanho não ficaria invisível, mesmo com gabrielas e cabriolas tentando escondê-la. E depois os espantados pássaros que povoam as goiabeiras ficaram sabendo: não haverá mais goiabeira por causa do acordo assinado à surdina.

Nossa rua tem uma goiabeira: não há de escapar aos corvos, porque como disse numa canção o poeta português Zeca Afonso: “eles comem tudo… eles comem tudo… não deixam nada”.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.