Mimimi

Uma tragédia é sempre uma tragédia.

Um dia e uma noite inteira. Semanas e semanas e não acontece nada. Já outros somos visitados por noites sem dormir. Prefiro sentir sempre ao invés do adormecer doente. A lente de aumentar e de diminuir está nas mãos midiáticas de quem tem poder, ou a mídia controla o poder. É sabido então que escolher quais notícias serão dadas e mesmo a ordem em que serão dadas modificará o sentido.

Se eu vejo uma foto com meu filho invariavelmente me trás alegria. Até que ela deixa de ser a imagem e se torna uma narrativa. As narrativas não são meu forte nesse aspecto porque em geral repetem minhas experiências.

Uma foto e várias dúvidas.

Uma festinha de aniversário: Com vários vivas! Parabéns! Até que o clique quebre em algum canto, em alguém o encanto. Novo clique e enviar: pronto! Na velocidade do mundo web a fotografia alcança destinos vários.

Lá está ela: A foto. Uma única e solitária imagem que consegue ativar a passividade do pensamento matutino.  O que teria permeado aquela organização, uns a frente, um ao fundo, bem atrás. Um sorriso sem sorriso. E imediatamente estabelecemos como um traço hereditário de timidez. Não é verdade, é estranhamento.

De um jeito e de vários outros nos ensinam desde muito pouca idade que os primeiros lugares, o shopping da elite, as universidades, os postos empresarias mais altos, os cargos mais bem remunerados, as propagandas, os exemplos gerais não é nosso aquele lugar. Para nós as margens, a apatia, a desinformação, e a exceção. Beyonce ? Pelé ? Obama? …

As coisas estão mudando. Não me iludo.

É uma foto. Um menino negro. Em outras poderia ser deficientes, portadores de síndromes, gordos, magros demais, de aspectros, de marcas. Como se o álbum da vida fosse para a capa de revista. Re – vista! É a imagem que fez um registro, e cabem várias versões. Penso nos meninos negros parados nas blitzes policiais em revista. Não dá capa.

Diferente da tragédia, uma foto são várias. Carregam versões, inversões e aversões.

Acostume-se com os silêncios. Não aconteceu o ciclone em Moçambique? Onde fica o Zimbábue? Luto pelos mortos e pelos vivos. Coisas mais importantes acontecem a todo o momento. Como em um zapping pela TV, o cérebro percorre as dores todas: parlamentares negras são barradas nos elevadores privativos, um corte para a música de Jorge Aragão, mais de mil mortos em Moçambique, nenhum envio de ajuda americana que resulte em petróleo, menino de 12 anos é morto quando sai para comprar lanche, a maioria dos meninos mortos na escola em Suzano são afrodescendentes, e então a crise no país brevemente sem previdência desaguará em uma Golden Shower.

Todos os assuntos e nenhum me choca mais que a foto do futuro pintado com meu filho no fundo. Assim, o texto é grito para ouvidos que se acostumaram com o racismo nosso de cada dia, que pode ser machismo, ou preconceito. Acusam a minha monotemática como se já tivesse bastante disso por aí:

– Mimimi. Vitimismo.

Não perca o raciocínio e se permita o espanto com o Ciclone Idai. Não se assuste porque morreram pessoas lá, como morrem aqui é verdade, mas é preciso se indignar para você não ser a tormenta de alguém. Não passou na TV. Se passasse, o que será que a imagem iria nos dizer?

Uma tragédia é sempre uma tragédia.

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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