Milagrário pessoal

Este romance do angolano José Eduardo Agualusa, que vive entre Lisboa e Luanda, tem como personagem-tema a língua portuguesa e dentro desta, o surgimento dos neologismos.

Uma língua falada por diferentes povos africanos, por brasileiros, pelos timorenses no Oriente, e pelos portugueses, obviamente, sempre se enriquecerá com a contribuição de um e outro povo, de uma e outra cultura. O português são muitos! E mesmo no que se costuma chamar de português padrão, mesmo mantidas as estruturas mais fixas da sintaxe (ainda que mesmo aí tenhamos mudanças consideráveis em que, por exemplo, no português oral do Brasil a estrutura é muito mais tópico/comentário do que sujeito/predicado), é particularmente no léxico que as variações acontecem mais rapidamente (inclusive por influência de outras línguas que não aquelas autóctones dos lugares conquistados no passado pelos portugueses).

Pois é a existência dos assim chamados neologismos que dá tema a este romance, e eu diria que eles se fazem tão presentes ao longo do enredo, que acabam se tornando também a personagem central da história.

A ideia de um romance que tematiza a própria língua e suas formas de produzir neologismos, sem cair na tentação técnica de analisar ou mesmo elencar qualquer deles, é brilhante. O que temos?

Uma pesquisadora de neologismos: uma jovem e bonita, Iara, tem por trabalho caçar, em todos os textos disponíveis na internet, vocábulos que não estão dicionarizados. Procura o seu velho “professor” – a personagem não será nominada, mas é a narradora da história – preocupada com fato de que lhe apareceram, de repente, um conjunto enorme de novas palavras, os neologismos perfeitos! E como não é costume, parece-lhe que existe uma fonte que está gerando estes neologismos.

Começa então uma espécie da “caça” à fonte geradora dos neologismos, viajando o professor – um homem acima de 80 anos – com uma jovem pesquisadora que utiliza seu programa para encontrar novas palavras.

Nestes deslocamentos espaciais – viagem à Angola, viagem ao Brasil – vão aparecendo os novos personagens, sempre escritores e poetas, com os quais conversam o professor (e escritor) angolano e a jovem Iara. Assim, no Brasil vão encontrar um suposto escritor, Alexandre Anhanguera, em Olinda, precisamente quando este recebia a visita de outro poeta angolano, Plácido Domingo. O nome deste poeta vai ser motivo de referências aos nomes comuns entre portugueses, que no entanto estranham os nomes dos africanos e brasileiros:

Chamo-me Plácido Domingo. Muitos riem sempre que me apresento:

Plácido Domingo?! Ah! Ah! Que engraçado.

Estendem-se a mão: António Barata, Joaquim Rato, Manuel Mosquito.

Barata? Rato? Mosquito? O senhor chama-se rato e ainda ri?!

Em Portugal há muito mais ratos do que leões. Conheço camelos, coelhos, aranhas, leitões, mas nunca tive o privilégio de ser apresentando a um tigre ou uma águia. Baratas, esses, são aos milhares. Uma verdadeira praga. Ao mesmo tempo, multiplicam-se por todo o lado as associações insensatas de apelidos, sem que a maioria das vítimas se aperceba. Esta chama-se Maria do Rego Leal, aquele José Penetra Murcho. Pior ainda são os antropónomos que as pessoas inventam, mutilando outros já existentes, ou recortando e colando partes de vários. No Brasil, os favelados baptizam os filhos com nomes jdos ricos e dos poderosos: Kenedy dos Santos, Washington Cardoso, Suyperman da Silva. Por fim, temos as jintanjáforas, palavras sem significado algum, escolhidas apenas pela sonoridade. Vale tudo.

 

Entremeados a este enredo de caça à fonte que gerara tantos neologismos, há dois movimentos distintos: um em que se reflete sobre a própria língua, sobre os modos de falar, sobre a vida da língua. Tomemos alguns momentos e enunciados a este respeito, iniciando pelo primeiro enunciado da história:

 As palavras, como os seres vivos, nascem de vocábulos anteriores, desenvolvem-se e fatalmente morrem. (p. 13)

Entre as palavras recém-nascidas a taxa de mortalidade é elevada. (p. 14)

Escreve Moisés da Conceição que a língua portuguesa, sendo já africana na sua matriz, pelo demorado convívio com o árabe, que muito a contaminou, necessita de enegrecer ainda mais, afeiçoando-se à geografia dos lugares onde estão os seus abundosos falantes. (p. 32)

Os livros reproduzem-se, multiplicam-se, quando guardados juntos em grandes quantidades. (p 37)

Anhanguera, a propósito, é um apelido tupi. Significa alma antiga, ou vida antiga, e nomeia uma entidade protectora das florestas e dos animais bravios. Os jesuítas, que no início da colonização portuguesa se dispuseram a catequizar os índios, confundiram Anhanguera com o diabo. (p.46)

“A saudade mais sofrida é a que não se pode partilhar na nossa língua”. (p.52)

Morança é um termo do crioulo guineense. Designa um agregado familiar. E desamparinho, em minha opinião uma das mais belas palavras do crioulo cabo-verdiano, dá nome àquela hora feliz, ao final da tarde, quando o dia cede lugar à noite, o calor esmorece, e os velhos se sentam nos passeios, fruindo o fresco e as cigarras, e vendo as moças passarem sacudindo as ancas. (p. 57

Aristófanes, meu avô paterno, padecia do vício da palavra. […] Conta-se (contou-me meu pai) que certa ocasião um advogado lisboeta, seu velho desafecto, o acusou de grandiloquente. Aristófanes riu largamente: Grandiloquente, eu? O que eu sou é um grande louco ente. (p. 165)

O segundo movimento é uma remessa constante a autores conhecidos, africanos, portugueses e brasileiros. O narrador tem uma particular predileção, confessa-a, por Camilo Castelo Branco (por muitas novas palavras), mas também saúda as novas sintaxes produzidas pelas sequências sintagmáticas exuberantes de um Manoel de Barros, ou um Guimarães Rosa, ou um Machado de Assis, ou Sophia de Mello Brayner Andresen. Esta aparece numa das notas do diário do narrador, quase no início do livro:

Esta noite sonhei com um verso de Sophia. Sonhei que o tinha escrito eu. Fiquei feliz que continuei a sorris mesmo depois de acordar. “O senhor professor parece que viu Deus em toda sua glória”, disse-me Gina enquanto me servia o café. Ter sido Sophia durante alguns segundos não anda muito longe, parece-me, da glória de ver Deus. (p. 16)

Entremeados aos episódios que, digamos, constituiriam um “enredo” linear de busca das fontes geradoras de neologismos, numa pareceria entre Iara e o professor, que acabarão, como é óbvio, fazendo amor, aparece o “milagrário pessoal”. São histórias em geral africanas, onde o diálogo entre as espécies é costumeiro; onde transformar-se de homem em animal e vice-versa é encarado com a maior naturalidade. É precisamente no diário que ele vai anotando estes milagres, passagens, observações do cotidiano. E histórias.

Esta estrutura do romance, em que aparece o milagrário, em que aparecem escritores, em que aparecem os neologismos, em que aparece uma paixão na velhice e sua realização sexual, abre o espaço para a “hipótese” do professor de que as palavras nos foram dadas pelos pássaros! Parece-me haver aí um jogo metafórico: os pássaros voam, cantam, assobiam… os escritores pairam acima do cotidiano… ambos seriam as fontes dos neologismos.

Somente no final do romance, quando o narrador volta para a Angola e de Luanda viaja para uma aldeia desaparecida, Massangano, onde deverá encontrar-se com desconhecidos membros da Associação dos Homens-Pássaros, que lhe cobram a devolução de algo que lhes pertence. Trata-se do “testamento”  de Domingos Ferreira da Assumpção, o Quitibia.  O documento ele o encontrou numa caixa de sapatos… e por ele se descobre donde nascem as palavras.

Na “economia” do romance, esta “devolução” significaria efetivamente a morte, para a qual ele caminha. O documento é uma metonímia: quem produz vocábulos que os logótetas (definidores de palavras, dicionaristas) recolhem são os falantes e entre eles principalmente os escritores. Ele mesmo fora a fonte dos neologismos perfeitos que tanto incomodaram Iara, e lhe chegaram às mãos por artes do velho professor apaixonado: uma forma de conquista de uma pesquisadora de neologismos…

Este final, esta entrega da voz que deixará de gerar novos vocábulos com outros vocábulos, encontra sua frase completa:

“Amanhã, nunca mais ninguém me acordará.”

Como se chama ao lugar onde dormem as palavras por estrear? Um Verbário?

É para lá que eu vou.

 

Referência. José Eduardo Agualusa. Milagrário pessoal. Alfragide : D. Quixote, 2ª. ed., 2010.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.