Meia verdade e muitas mentiras

Ninguém larga a mão de ninguém, exceto algumas.

Existem mãos, e corpos que nunca foram vistos. Eles precisam mesmo ser invisíveis desde sempre para não causar constrangimento: uma criança tão nova que pede nas ruas, uma mãe tão sacrificada nos afazeres domésticos de tantas outras casas, um pai que carrega um caminhão inteiro e termina o dia sem força sequer para deitar o pequeno filho nos braços, um filho morto sob o corpo muito visível da segurança patrimonial.

Esse mesmo corpo que esta sempre a nossa espreita, multiplicados em vários, nos perseguindo nas câmeras, nos seguranças disfarçados dentro das lojas, e os clientes que escondem suas bolsas ao sinal da nossa presença: Patrimonial.

Patrimônio é para quem tem. Cor é para quem não tem.

E estou aqui de volta dizendo sobre essas coisas todas. Não sei se os ouvidos entorpecidos de medo me ouvem até o final. Os gritos todos sufocados como um caso mortal de enforcamento, estrangulamento que ganhou nova grafia.

Ninguém vê a rapidez que as câmeras, emoções, comoções e sensibilidades se calam para o assassinato. Em partes estão certos: mais um.

Não teria menor ou maior importância se fosse o último, o primeiro… Tudo guardado sob o manto do tanto faz, que está dentro do contrato da visibilidade e da invisibilidade que parece ter cláusula pétrea.

Pétrea. Pedra e Pedro.

E lá estava ele. Vivo e no instante seguinte tão morto.

Acabaram-se sonhos possíveis, Pedro.

Sem quilombo, sem luta. Tal qual acontecia nos tempos dos cafezais, dos algodoais, dos arrozais, e de tantas culturas produzidas com tantos ais. Vidas sufocadas até ser morte.

Poucos sabem o que acontecia, não conseguem imaginar o tempo verbal que conjugava oprimir até a morte junto com vadiagem, dito assim e sabe-se lá como com preces e sermões pareceria humano. O tempo de hoje é de livrinho didático com atividade que ensine a caçar escravos para voltarem pra senzala. Então teremos novos capitães do mato, bem treinados, equipados para defender a propriedade.

Ninguém segurou sua mão.

O patrimônio estava a salvo com narrativas potencialmente construídas de um bandido. Depois usuário de drogas, e depois problemas mentais. E se não for? Já era.

Era uma vez um conto de fadas, sem felizes para sempre no final, sem final, desde sempre sem história real. A ficção substitui a verdade, contada diversas vezes nos noticiários da TV: Bandido bom é bandido morto, direitos humanos para proteger bandido, tá com pena? leva pra sua casa!

Viva a show de horrores.

Temos ainda a história de Jenifer de 11 anos, sim o nome dela é Jenifer e ela poderia ser tanta coisa, de novo acabaram-se os sonhos possíveis no Rio de Janeiro, que continua lindo e de braços abertos para quem puder pagar. Cristo de costas para os tiros de fuzil que partiram do projeto que autoriza matar.

Todos digam amém.

….

Sei ainda ver com um só olho,
enquanto o outro,
o cisco cerceia
e da visão que me resta
vazo o invisível
e vejo as inesquecíveis sombras
dos que já se foram.

Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silencio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança”.

(trecho do poema Meia lágrima de Conceição Evaristo in Poemas da Recordação e outros Movimentos.  )

É a comunhão.

Estamos ligados pela dor aos nossos ancestrais e aos nossos descendentes que são retirados do nosso convívio ainda jovens demais. Não sou eu que digo é ela: as inesquecíveis sombras dos que já se foram.

Ela que me abraça com seu grito. Eu só obedeço.

As sombras são vítimas, ou efeito colateral de um sistema que se aperfeiçoa em passos largos.

-Não vai sobrar ninguém para dar a mão.

Chega de lágrimas. É preciso que as mãos estejam soltas, e desejosas de socar o ar. Mãos dadas podem brecar a marcha. Soltem e comecem a enxergar, ainda que com um olho só, é possível ver ao longe e esquecer de chorar o cisco das tristezas que turva a outra visão.

Veja! que pode não ser uma boa estratégia uma ciranda alucinada que dá meia volta, e volta e meia volta dá.

Solto o grito e encontro Evaristo.

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

follow me