As pessoas têm vários medos.
Mulher, tenho medo de ser confundida, de ser violada, agredida, silenciada, humilhada, morrer, de perder alguém que amo, sofrer injustiça, acidentes, roubos e mais uma infinidade. Existem ainda pessoas que têm medos mais banais – que por não fazerem parte dos nossos, acreditamos que são bobos.
Durante essa semana uma editora resolveu colorir Machado de Assis com os tons que os historiadores do escritor atribuíram-lhe: negro. Não é o que podemos dizer de justiça histórica, afinal, o apagamento da cor e etnia do escritor deve ter servido de desestimulo para muitos outros pretensos autores, intelectuais, artistas, e negros. Nesse momento a gente teme pelo passado e vê que está em curso o apagamento do futuro.
Enfim, voltarei caro leitor a falar do medo do que se desconhece, e do pior de todos os medos: o conhecimento.
Para ilustrar bem, pensemos nos medos infantis, não conseguimos sequer ir ao banheiro em nossas inocências, tememos o que estaria debaixo da cama. Uma vez adultos sabemos que isso é, de modo geral, uma tolice. Inutilmente tentamos explicar para os pequenos, acendemos a luz, mostramos debaixo da cama, e nada faz efeito. Ainda assim, somos incapazes de demovê-los em definitivo do terror. Novo dia, o mesmo medo vai estar lá.
Esse início do texto tem pouco ou nada a ver com o que se seguirá. Engano, porque é exatamente sobre isso, e preciso que você continue comigo até que eu diga que acabou, prometo não me alongar mais do que uma página.
Durante nossa vida, nossos medos são revisitados. Tornei-me perita em observar gestos, olhares, sorrisos, silêncios e falas. Durante muito tempo, acostumei-me a antecipar o que estaria por vir, já sabia o que se seguiria, e isso nunca serviu para aplacar a dor: saber a verdade, ter todos os elementos, repetidas histórias e trajetórias.
Acendendo a luz do quarto, olhando debaixo da cama. Continuava sempre do mesmo jeito. Não eliminava o sofrimento, o terror. A razão era nada, perto do que acontecia. Sinais.
Não à toa querem apagar Paulo Freire da educação brasileira, não se iludam leitores, porque não é pelo método reconhecido internacionalmente de alfabetização de adultos. Paulo Freire em suas ideias sustentava que a realidade das pessoas pode ser mudada uma vez que estes se saibam sujeitos autores de suas próprias histórias. Paulo Freire já no primeiro prefácio do seu livro A importância do ato de ler revela sem rodeios que é por meio da leitura crítica do mundo que as camadas populares deixariam seus estado de anestesia e poderiam constituir uma ação contra-hegemônica. Entendem porque o medo?
Nas ruas jovens negros continuam a morrer. Correm e dançam nos semáforos atrás de um trocado. Pedem nas proximidades dos restaurantes que a fome estampada em seus rostos infantis incomode os corações e consciência dos que comerão. Mulheres negras prioritariamente destinadas aos trabalhos domésticos, que guardem seus diplomas. As piores remunerações. As negativas nas seleções. Está tudo ali de novo. Luz acesa ou apagada. Racismo às claras ou não.
E como se fosse possível, exige-se desses e dessas que eles sejam pioneiros no enfrentamento, que liderem o levante por que afinal são os que mais perderão.
É verdade. E desta vez não é a verdade que liberta.
Explicamos, e dizemos que vidas negras importam. Inadvertidamente alguém se levanta e diz: todas as vidas importam, e sim é verdade. Não sabemos de novo como explicar. Somos os adultos que falam as crianças sobre seus medos, nos esquecendo de nossos próprios medos de outrora.
E mostramos que está tudo certo. Vai passar com uma boa xícara de leite quente e cobertor, nos sentamos próximos a cabeceira e façamos ainda um afago nos cabelos.
– Dorme criança…
Embalemos a noite com uma canção de ninar. Embora os belos sonhos sejam separados para poucos, para outros restará o além.
E as crianças não temerão os monstros debaixo da cama, os pais armados até os dentes, alçados a super-heróis defensores da propriedade e da prioridade que seus filhos herdarão sadiamente. E os jovens já os trazem pelo braço e já os convidam para jantar são seus novos amigos, com quem exercitam a intolerância nossa de cada dia. Todos comem com bons modos. Ignorando as diferenças, trapaceando os direitos desde a mais tenra idade.
Ainda assim o medo estará à espreita do primeiro ato: do revés, do esgarçamento do racismo cordial, dos miseráveis, dos desempregados, dos que não têm ou terão nada a perder.
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
É muito triste ir constatando sempre esta exclusão histórica.