Matar e morte: verbo e substantivo e nada sobre política

Não é um texto sobre luto ou lutar. Poderia. Talvez seja afinal. Se for, peço que vocês me perdoem.

Existem verbos que não sei conjugar. Já outros faço bem: os tempos, os modos. Gosto especialmente do presente. Já gostei mais. Antigamente no passado recente, gostava muito do futuro que hoje é presente. É que as coisas todas mudaram. Tantas coisas. Estava errada. E os erros, sobretudo os que não são nossos, têm um caráter punitivo. Então os verbos que não sei conjugar me atormentam sobremaneira.

Um desses verbos, em especial, aprendi com Clarice Lispector, em um de seus livros voltado ao público infantil: A mulher que matou os peixes. Essa obra dela me ajudou muito a entender uma infinidade de sentimentos, e já não era criança quando o li.

“Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer. Logo eu! Que não tenho coragem de matar uma coisa viva! Até deixo de matar uma barata ou outra. Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo criança ou bicho sofrer. Pois logo eu matei dois peixinhos vermelhos que não fazem mal a ninguém e que não são ambiciosos: só querem mesmo é viver. Pessoas também querem viver, mas infelizmente também aproveitar a vida para fazer alguma coisa de bom.” (LISPECTOR, Clarice. A mulher que matou os peixes. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.)

A narrativa além de ensinar a conjugar o verbo matar, ensinou-me a perdoar, e a entender que as relações humanas devem, ou deveriam, ser observadas em uma perspectiva de afeto e de compreensão, ainda mais quando envolvem perda e dor.

Ao final, descobrimos que a morte dos peixes foi uma fatalidade, um descuido, um silêncio. Logo para a autora que era tão generosa em ouvir e ver os silêncios do mundo. E só acredito no desejo de redenção genuíno da autora porque o efeito desse texto é mágico, e ainda mais para o público a que se destina. Ensina-nos a encarar a morte, e o assassinato a partir de  nossa autoria.

Aprendi a conjugar o verbo matar desde então. Sei que qualquer um de nós é capaz de fazê-lo, eu, tu, ele, nós, vós, eles. Somos todos em maior ou menor grau assassinos. E as redes sociais tem sido fundamental nisso. Absortos que estamos, não ouvimos assim como Clarice os que estão ao nosso redor: crianças abusadas, mulheres espancadas, os violentados, vítimas do abandono, os gordos, os fora do padrão, pessoas em situação de rua, usuários de drogas, sem teto, sem-terra, indígenas, quilombolas, desempregados, afastados de nossa classe social, os que não comungam de nossa fé, os que comungam, os homossexuais, os transgêneros, os jovens, os velhos, os deficientes, os doentes, os pobres, os miseráveis, os famintos e os que tem fome.

Todos mortos sucessivamente pelo silêncio. E por descuido abandonamos essas pessoas em seus aquários. Cotidianamente cuidamos de nossos afazeres, e esquecemos até de pedir perdão pelos que matamos.

E sinto que me matam todo dia. Nunca senti tão forte.

Sinto que me matam quando negam atendimento a mulheres vítimas de abuso sexual.

E morro quando vejo pessoas acreditando que não saber das vítimas é melhor, conheço vítimas de abuso infantil, doméstico, sexual, e conheço as violências várias: espancamentos, torturas psicológicas, submissão, opressão, cárcere privado, estupros, sexo sem consentimento, pedofilia, tentativa de homicídio … Em todas as vezes que soube, morreu um pouco da humanidade em mim. Explico-me: a maioria das pessoas que sofriam, poderiam ser ajudadas, mas em todos os casos eram negligenciadas por suas famílias, por seus amigos, por seus vizinhos, por seus professores, por seus patrões, por seus amores, por seus guias religiosos, por pedidos de silêncio. Entendo que em muitos casos, o pedido era motivado pela vergonha, pelo medo, e por uma tentativa de fingir que não aconteceu, como se as pessoas pudessem se curar sozinhas. Isso é o que a cultura do estupro faz: vergonha, culpa e silenciamento de um lado e de outro o estímulo a mais casos – dada a certeza da impunidade.

Pensando nisso entendo que muitas pessoas desejem matar. Querer se armar, defender seus patrimônios e coisas do gênero. Então escolhem assim não ter que ver, não ouvir. Silenciam as vitimas para que depois matar seja uma fatalidade, uma situação que fugiu ao controle. Então não seremos responsáveis:

– Estava cuidando da vida, dos meus, do que é meu. Quem imaginava? Eu não pensei nesse aspecto…

E ainda assim é preciso fazer o que é certo. Entender que não basta cuidar dos nossos e dos iguais. Comecei esse texto falando dos verbos, e agora já ao final descubro que é um texto sobre silêncio, e me lembro de outro livro, que a morte seja substantivo. Porque depois de matar, o que resta é a morte. Então  preciso indicar a leitura de O resto é silêncio, do Érico Veríssimo, que me marcou na juventude. O livro trata do suicídio de uma jovem e as várias perspectivas de quem observa o fato. Leitura que o tempo e vento vai levando da minha memória. Achei um trecho na internet, olhem que magistral:

“- Você é muito menino, ainda não sabe de certas coisas… Mas viver é morrer em prestações. Cada criança que nasce assina com a vida um contrato de compra e venda… e a gente nunca sabe o prazo certo do vencimento. – A sua dissertação fora interrompida por acessos de tosse em que o homenzinho ficava vermelho, engasgado, enquanto sua boca expelia para todos os lados um chuveiro de saliva. Era preciso nada menos de cinco minutos para ele voltar à calma e recomeçar a exposição. – Mas como eu ia dizendo, a criança assina o contrato e o vendedor, que é a Morte, passa a cobrar as prestações anualmente. Cada ano a gente morre um pouco. Quando vai ficando velho, as prestações já não são anuais, e sim semanais. Por fim o contrato se vence. O pior de tudo é que a gente continua sem saber o que comprou… Por acaso você sabe?” (VERÍSSIMO, Érico. O resto é silêncio. 15ª ed. Editora Globo: Porto Alegre, 1980.)

Preciso reler esse livro, antes que o resto seja silêncio.

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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