Alguns assuntos me são caros, e por isso prefiro introduzi-los de forma leve, uma amiga disse que lembra uma conversa informal, de buteco – o que considero um elogio, e vocês o que acham?
Confesso que já inicio esse texto tendo os olhos marejados, são olhos pequenos, durante a maior parte da minha vida acreditei ter olhos enormes, talvez eles tenham diminuído com o passar dos anos. É possível! – dizem alguns, eu gostaria de pensar na diminuição de algo que me incomoda tipo: nariz. Quem me conhece deve ter pensando em barriga, e quero desapontá-los dizendo que ela não me incomoda, talvez, um pouco, às vezes, mas definitivamente não o suficiente para um texto sobre isso. Também não sobre meu nariz.
Sabia que experiências neurolinguísticas dizem que a maioria das pessoas parou a leitura e foi conferir se meu nariz era enorme? E, ao final pensaram: – não é assim tão enorme. Eu sei que não, outro dia explico sobre o nariz, por hora confesso que o fato de tê-lo herdado do meu pai me deixa mais feliz, aproxima-me do meu pai, e sinto-me feliz. Interessante pensar sobre isso, que as coisas vão tomando outra dimensão, formas, contornos e gostos a partir de nossas experiências, não necessariamente do tempo que passa.
Agora, o real problema era a boca. Sim, a boca era enorme. Muitas vezes ouvi da minha mãe que eu tinha que aprender a ouvir mais do que falar. Sei que não tratava da boca fisicamente, até por que essa herança é dela. Dizia que era melhor a gente se calar, mas seu exemplo nunca era esse. Fale, fale, fale. Se tiver certeza, vá até o fim. Na igreja ouvia sobre o silêncio de Maria. Entendia a expressão como: – seja resignada, virtuosa! Não deixa de ser interessante, uma estratégia boa se aplicada a: – Não jogue pérolas aos porcos. Ainda assim, a voz me é muito preciosa. (Já assistiram esse filme: Preciosa ?)
Libertar as vozes significa liberdade e paz. Todas as pessoas devem ter o que dizer, e todos os discursos merecem ser pronunciados, e escritos, e lidos. Sem isso, temos o apagamento da memória. Esquecer não é libertador, mas a compreensão sim. Não podemos viver com fantasmas e sombras de nossas memórias, tentando desesperadamente que elas deixem de existir. (Outro filme é Brilho eterno de uma mente sem lembranças, já viram?)
Na literatura policialesca ou mesmo de novelas e filmes, quando uma pessoa vai matar alguém, costuma dizer que vai silenciar. É verdade, silenciando uma pessoa, outras tantas ficam sem ter narrativas que as representem ou mesmo que as inspire, em alguns casos até sem testemunhas, sem validação de argumentos. Quando a tentativa de silenciamento é mais cruel e brutal torna a vítima até um exemplo a não ser seguido, ou poderia ter o mesmo fim. Seria o silêncio afinal.
E todas as regras tem exceção. E periga mesmo é quando a excepcionalidade deixa de ser um desvio, e passa a ser a regra.
Assassinaram Marielle. Um ano. E não silenciaram sua voz, não silenciarão. Impossível não pensar na jovem, mulher, lésbica, negra, favelada, mãe, vereadora, socialista, empoderada, e com um sorriso nos lábios. Uma mulher que explicava com tranquilidade e doçura que temos direito de existir, de falar, de amar, de viver como bem entender.
Na noite que antecedeu seu assassinato ela vibrou sua voz perguntando até quando vão nos matar, ela não era uma exceção. Tinha que ser. Somos muitos. Muitas vozes.
Deixamos para trás os chicotes, os grilhões, os açoites, o navio negreiro, as noites ao relento, as faltas de direitos, a fome, o desamor, as ofensas, o preconceito, a negativa de dignidade, a brutalidade, a exploração, o desprezo, a invisibilidade do triunfo do mal. Deixar para trás não significa que ficou no passado a opressão, o racismo e todas as formas de intolerância, o sentido hoje é de liberdade.
Só agora entendo o real sentido da polifonia no discurso. Um discurso é atravessado por outros, tantos e mais, inclusive dos que se calam e se calaram por tanto tempo. E ainda teremos o dia-a-dia: notícias de mulheres mortas, vítimas de feminicídio, violência doméstica, jovens negros sendo dizimados, alijados do mercado de trabalho, com baixa escolarização, uma escola que não dá conta, herdeiros da exploração, felicitados por seus subempregos… Morte na escola. Mortes.
E o vídeo circula na velocidade dos cliques atuais, todos veem os corpos estendidos no chão. Não são os meus filhos, não conheço seus pais. Então minha e a sua dor será uma dor quente. É a cena que meu olhinho registrou. Sinto-me invadida pela barbárie. Não é natural mesmo conhecendo as estatísticas. São meninos na escola. Meus alunos todos caberiam ali. Os que já foram e poderiam ser. Eles estão no chão e não dormem. Se fechar os olhos não consigo ter bons sonhos: Longe da armas, da violência, do desamor.
Mataram Marielle.
– Até quando vão nos matar?
E aquilo que a gente não entende, e sem entender a gente sabe que faz sentido, é certo e exato. Nosso sangue é outro? Quase me perco nos meus traços negroides associados a outros fatores que me empurram para as margens: fora dos padrões de liberdade, fora dos padrões de felicidade. E são tantos noves fora que não sobra nada. Somos nada? Quem somos afinal?
E ouço ainda tantos passos junto aos meus. Sigo. Até que caminhando comece a se achar no outro, nas dores, nas perdas, nas lágrimas. Até que todos sejam nossos filhos e filhas, e não corpos estendidos no chão.
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
Meus olhos hoje, com um ano já passado, estão pequenos. Muitas, lágrimas também já chorei pelos estudantes que não eram meus, sendo. Obrigada Mara por traduzir muito bem meus pêsames à sociedade brasileira.
Muito bom! Parabéns!
E eis que Marielle silenciada inverte a ordem e pessoas GANHAM voz quando ela morta. Eu aqui em Goiás nunca soube de Mariele viva, agora já sem voz clama através da boca de tantos outros pelo Brasil e pelo mundo. Uma legião se reúne para falar por ela, trabalhar por ela, ser ela. Marielle morreu para tantas outras Marielles nascerem em nós. Reunidas e unidos conseguiremos mais. Eles serão resistência, nós existência!!
Uma reflexão dolorosanente profunda. Meus olhos também estao diminuídos, mas sinto-me fortalecida ao encontrar outros olhos inconformados, corações inquietos diante disso tudo. Obrigada pela leitura!