Sempre que termino de ler um livro de Mia Couto e penso em como iniciar este registro, vem-me à cabeça sempre o mesmo enunciado: “Um Mia Couto é sempre um Mia Couto”. Por menor ou maior que seja a história que conta. Neste caso, uma novela curta e densa.
Ainda assim, o enredo se deixa complicar pelas reflexões que traz à tona. Por isso não é simples, ainda que se possa resumir perdendo seu encanto, com palavras poucas. É o que faço para depois retornar ao encantamento da narrativa. Trata-se da história de Zeca Perpétuo, já retirado da pescaria, já velho e “aposentado”. Filho de Agualberto Salvo-Erro. O pai também pescador de alto mar. E em alto mar carregava na canoa uma bela mulher, que o filho via da costa e para quem a mãe virava de costas. Certo dia, a amante cai n´água e Agualberto mergulha buscando a mulher que ama. Canoas e pescadores entram para ajudar. Nenhum dos dois aparece. Depois de muito tempo, Agualberto ressurge entre as ondas do mar. Festejam-no os companheiros, quando a mulher se põe em sua frente, olha-o de corpo inteiro e ao chegar aos olhos grita: os olhos se tornaram azuis, aguaram. Desde então, Agualberto se emborou, para usar o neologismo de Mia Couto.
E ainda menino, torna-se Zeca pescador e tem que lidar com a “orfandade” de pai ausente e com a loucura da mãe abandonada. Tudo isso o leitor vai sabendo porque conta Zeca à vizinha Luarmina (luar + mina, no duplo sentido desta), que sempre lhe pede histórias de sua família. Luarmina fora bela, de descabeçar machos que em seu torno “abutravam” arrastando asas. Agora, já gorda e antigada em anos, vive pacatamente vizinhando com Zeca que é por ela apaixonado e que frequentemente lhe arrasta asas:
– Sabe o que dava jeito? Era a gente os dois nos combinarmos, está a perceber, Dona Luarmina?
– Ajuíze-se, Zeca.
– Faz conta somos verbo e sujeito.
– Já conheço essa sua gramática…
– A senhora, minha boa Dona, nem sabe quanto enriquece minha retina.
A história toda vai nesta toada – “minhas visitas são para lhe caçar um descuido na existência, beliscar-lhe uma ternura. Só sonho sempre o mesmo: me embrulhar com ela, arrastado por essa grande onda que nos faz inexistir. Ela resiste, mas eu volto sempre ao lugar dela. E por entre um futuro que não vem – o futuro há e inexiste – e o passado de feitos reais ou imaginários que no presente Zeca conta, conta… e que Dona Luarmina sempre quer escutar mais.
Desdobram-se assim os episódios: o convívio com a mãe que jamais se diz abandonada e que lhe pede que escreva cartas ao pai embora ele desconheça as letras; a vida do pai a abençoar os anzóis, linhas e iscas dos pescadores que fazem fila na qual entra também Zeca, mas que jamais consegue estar frente a frente com o pai e por isso nunca tem a bênção que dá o pai para os outros; o da morte de Agualberto que pede ao filho que o leve a vários lugares porque não quer morrer num único lugar, quer plantar sua morte em vários terrenos e aproveita este fim de vida para se rearticular com os deuses abandonados no passado a quem deixa, em cada lugar, uma oferenda; a promessa que faz ao pai de sempre levar ao “mar da China”, naquele fundão, presentes e comidas para a amante afogada (e então o pai lhe conta: que nada abençoava, na verdade aproveitava iscas e anzóis para enviar à amada suas oferendas). Mas em tudo que narra, vai guardando um segredo. Um segredo que não esquece por causa das estridentes gaivotas que sempre afugenta a pedradas.
Dona Luarmina, ao contrário, gosta de gaivotas e faz-lhes uma gaiola. De modo que Zeca já não pode dormir. Certa noite, assim incomodado, leva gasolina e fósforo, põe fogo na gaiola e vê as gaivotas morrerem. No dia seguinte, leva seus pêsames a Luarmina, mas culpado que é, acaba confessando que fora ele quem ateara fogo. E no confessar, acaba por contar seu segredo: ele fora casado, uma bela mulher, Henriquinha. Todos os domingos, a mulher saía para a missa. “Aos domingos, em fecho de tarde, ela saía pelos atalhos rumo à Igreja de Nossa Senhora das Almas. Levava seu vestido preto, se afastava com passo de viúva. Olhando aquela mulher, da varanda, me atravessava um arrepio como se aquela marcha desenroscasse os fechos de minha alma. Depois, contemplando a saia eu me conciliava comigo mesmo. Uma esposa assim bela e devotada a Deus era uma agradádiva.
Vieram depois lhe contar: na verdade não ia à igreja, mas ao Morro Vermelho, onde dançava e se despia toda, mostrando sua nudez aos homens que ao pé do monte a desejavam ardentemente. Armadilha então um plano: encontra um velho calendário, coloca-o no lugar do atual, e aparece então um domingo extemporâneo… Henriquinha não compreende, mas acaba aceitando que é domingo e sai. Zeca Perpétuo a segue. E realmente constata o que lhe contaram. Sobe então também ele, desejoso do corpo da mulher, mas a empurra penhasco abaixo ao mar… nunca mais encontrou seu corpo.
Luarmina convida-o a ver seu feito: o resultado do fogo na gaiola. Ele não quer, ela insiste. Acaba indo, escudado pelas costas largas e gordas, não querendo ver. Por fim, mostra-lhe Luarmina uma gaivota que sobrevivera ao fogo. Ele não compreende como! Viva e voando, a gaivota representa Henriquinha…
“Eu me varandeava, olhando o oceano”. O tempo passa, e Zeca começa a ter pesadelos. Já não mais levanta da cama. Não sabe se dorme, se não dorme. Dormindo, o pesadelo o afogava no mar. Muito sua (febre?). Num dia destes, Luarmina o vem visitar. Traz-lhe lençóis novos. Ele confessa: está sendo castigado pelo pai porque não cumprira a promessa de levar presentes e ofertas à amante afogada. Morre afogado em pesadelos: “Mal palpebrejo, a dobra do lençol se cnverte em água e, no instante seguinte, tudo se avermelha e eu desaguo em rios de sangue. Se durmo, me afogo, se vigio me foge o juízo. Me faz falta o sonho, tudo quanto queria era sonhar”.
É então que outro segredo se revela: Luarmina lhe diz que cumpriu sim a promessa. Que a mulher jamais se afogara e que ela era esta mulher! E que Zeca a alimentara o tempo todo com suas histórias.
Seja isso consolo ao moribundo, seja isso verdade da ficção, pouco importa. Zeca Perpétuo morre nos lençóis novos que lhe trouxe Luarmina, sem realizar seu desejo de com ela se embrulhar, e cumprindo profecia do pai: “você há de morrer afogado em lençol faz conta os panos virassem ondas de água”.
Imaginem agora esta história toda contada no linguajar de Mia Couto. Cada capítulo deste Mar me quer, tem uma epígrafe, uma fala atribuída a uma personagem sempre presente em sua ausência: o avô Celestiano. Para uma amostra do estilo de Mia Couto, em lugar de inventariar seus estupendos neologismos, transcrevo as epígrafes:
- Deus é assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertarmos com força parte-se, se não seguramos bem, cai. (Dito do avô Celestiano, reinventando um velho provérbio macua).
- Lançamos o barco, sonhamos a viagem: quem viaja é sempre o mar.
- A canoa se fez ao mar, um cisco entrou nos olhos de Deus.
- Chaminé que construísse em minha casa não seria para sair o fumo, mas para entrar o céu.
- O mar tem um defeito: nunca seca. Quase prefiro o pequenito lago da minha aldeia que é muito secável e a gente sente por ele o mesmo que por criatura vivente, sempre em risco de terminar.
- O caracol se parece com o poeta: lava a língua no caminho da sua viagem.
- O coração é uma praia. (Provérbio macua, citado pelo velho Celestiano)
- Quando sentiu que estava morrendo, meu avô Celesgtiano chamou a mulher e pediu-lhe:
– Deixa-me fitar teus olhos!
E ficou, embevecido, como se a sua alma fosse um barco deitado num mar que eram os olhos de sua amada.
– Tens frio?, perguntou ela vendo-o tremer.
– Não. És tu que estás a chorar.
– Chorar, eu? Começou foi a chover.
(Lembrança de minha avó sobre o último instante do velho Celestiano).
Restam ainda alguns comentários sobre os nomes próprios desta novela. Ainda que possam ser nomes comuns na sociedade moçambicana – o que duvido – cada nome resulta de uma composição. Já apontamos para “Luarmina”: luar + mina. Antes de tudo, a lua está longe, inatingível aos desejos humanos, como Luarmina se fez o tempo todo de inatingível para Zeca Perpétuo. Na palavra “mina”, os dois sentidos possíveis: o de joia ou de raridade (beleza), mas também o de mina donde se tiram riquezas, e aí temos uma dicotomia: lua/mina equivalem a alto/baixo; mas mina também pode referir às “minas” (bombas) plantadas no caminho do inimigo (muito comum nas guerras) e neste sentido Luarmina pode ser uma bomba que explode homens. Tomemos agora o nome da personagem principal: este parece ser o único sem referências externas, além do segundo nome: Zeca Perpétuo. Zeca é nome da língua importada, do colonizador e Agualberto havia abandonado os antigos deuses para seguir o deus do colonizador, daí talvez o nome “José” tornado Zeca; Perpétuo fala por si. Pensemos em Agualberto Salvo-Erro: há aqui água + aberto (além do nome Alberto), cuja leitura pode ser “Adalberto do mar, da água” ou aberto à água, já que pescador de mares profundos. Salvo-Erro também fala por si, já que não se salvou da paixão que o acometeu. Henriquinha, nome da primeira mulher de Zeca, para além de “riquinha” em beleza, parece não fazer outras referências. Resta avô Celestiano, que é celeste, que habita o celeste. E que do celeste traz suas sabedorias que aparecem nas epígrafes mas também nas citações que faz Zeca, de que transcrevo:
Em algum lugar, lá n onge, a maré está-se a virar, o oceano se cambalhota na mudança das marés. Enquanto não recebia sinal desse reviramento, ele (Agualberto) se mantinha sem nenhuns modos nem pestanejo. Quem sabe não fala, quem é sábio cala. Como dizia meu avô:
– Diferença entre sábio branco e o preto sabe qual é? O branco responde logo-logo às perguntas. Para nós, pretos, o homem mais sábio é aquele que demora mais a dar resposta.
Por fim, o nome próprio do livro: Mar me quer, que remete de imediato a ação continuada de Luarmina que desfolha em todos os anoiteceres as flores, pétala a pétala, repetindo “mar me quer, bem me quer”, mas que também remete ao mar que “me quer”, sentido que resulta também da história de pescadores e de mortes por afogamento.
Há ainda as ilustrações de João Nasi Pereira. São espetaculares. São oito. Fica-se querendo mais. Numa delas, aparece Luarmina a desfolhar flores no bem me quer, mal me quer… Esta ilustração servirá de capa do livro. Um livro, na edição que leio, de capa dura, no formato de “livro de literatura infantil”. Aliás, eu o comprei pensando que seria um livro para minhas netas! Será, mas num futuro ainda longuínquo…
Referência. Mia Couto. Mar me quer. Ilustrações de João Nasi Pereira. 9ª. Edição, Lisboa : Editorial Caminho, 2000.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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