Uma mão. Ela que segura o chicote que alcança o menino ladrão. Bate, bate, bate, bate, bate, bate, bate, bate, …, … bate, bate, bate, bate, bate. Uma mão com ódio e energia que não sabe precisar quem tem fome. Uma mão que não se sabe igual, e não pensa, então chicoteia o menino freneticamente. Sente-se bem. Faz seu trabalho com vigor, é um forte, um vencedor.
Seu trabalho é esse. É, pois, um trabalhador. Empregado, em um país de desempregados, de precarizados, de subalternos, e antes desse tempo, não tão antes, de escravos. Ambas as mãos envolvidas neste episódio, possivelmente, receberam como herança o chicote: embrulhado no papel da Constituição, sem laço que não seja a corda no pescoço.
Sublime.
Em êxtase e frenesi, a mão que bate, esqueceu-se dos seus sofrimentos, de suas revoltas, de suas fomes, de seus desejos. Esqueceu-se de Deus. Esqueceu-se da história, da própria mazela de miséria que o cerca.
Bate no menino com vigor, tanta fúria há nesse bater, e marcando as costas do menino com as chibatadas sente-se um mito:
-Direitos humanos é coisa de bandido! Vai pra Cuba!
As crianças em Cuba não dormem na rua, não passam fome.
Um mito é um mito. Lembro-me do conhecido mito da Caverna. Está deveras preso à sua imbecilidade, à sua limitação, acredita que o menino roubou sem necessidade, nem em sonho o compara ao filho do político que recebeu depósito em sua conta, esse era apenas um menino, está sendo perseguido porque é filho de quem é, oras! Volta-se à sua própria cegueira, sem luz, sem holofotes, não mais… Agora é um herói, já que enfim, mostrou-se necessário à loja. Quem sabe uma promoção, uma entrevista para a imprensa.
Sim a imprensa. As mídias e as propagandas. Jornalistas que filmam esses casos e colorem as telas dos noticiários com sangue preto. Aquelas faces rosadas que franzem a testa e são as defensoras dos grupos econômicos, da justiça seletiva, do linchamento de ladrões, moradores de rua, pobres em geral, mas, sobretudo de negros.
A mão não tem apenas um dono, mas é uma mão coletiva. É uma mão que vocifera contra meninos que roubam chocolates, e que têm fome.
Escrevo sobre a mão porque não posso escrever sobre o chicote, sobre tal só poderia se como disse Machado de Assis: O melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão. E, em geral, quem tem o cabo na mão, não tem nos lombos de seus antepassados as marcas dos mesmos.
Ninguém solta a mão de ninguém, a menos que…
A outra mão, a do menino, é a que tem medo e que está sozinha, até que se saiba coletivamente que haverá o tempo da volta *no lombo de quem mandou dar…
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
Mara
Seu texto é lindo! Emocionante. O escrito tem os elementos da estética literária e os elementos da verdade real, material da história. Essa, história do chicote nas mãos dos guardas é trágica, desumana, inaceitável. Eu li, reli e ai da vou ler. Assim, como o escrito a Valsa. É literatura de alto nível.
Ah, o texto de Drumond é genial. Eu não conhecia..
Parabéns! E vamos continuar na luta. Sem folga!