Manhã transfigurada

Este livro do gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil tem, hoje, a idade de 36 anos: escrito em fins de 1981 e publicado em 1982. Se tem idade contável, tem tema eterno desde que o mundo humano existe: a relação homem/mulher num triângulo amoroso. E seguramente o triângulo produz a tragédia, do gênero que for.

O ambiente da história é o Continente, como chamado o Rio Grande do Sul, especificamente na vila de Viamão, num tempo distante para o mundo veloz em que vivemos, mas muito próximo em termos de história. Era o Século XVIII.

Camila, filha de fazendeiro às voltas com suas finanças, moça bonita e prendada, como se dizia então, foi escolhida para esposa pelo Sargento de Ordenanças Miguel de Azevedo Beirão, maioral da vila, reinol, estancieiro mais preocupado com seus campos e gados do que com a vida amorosa. Inicialmente, Camila não quer o candidato, mas sofre pressão paterna, que via no casamento a “salvação de sua lavoura”.

A tragédia começa na noite de núpcias. Com a escrava Laurinda, Camila havia aprendido como atrair um homem, como ser sedutora. Então age como aprendido, desvestindo-se e oferecendo ao sargento, que a repudia dizendo que ela deveria esperar a ação do macho e jamais se oferecer como uma puta. Diante de uma Mulher, o sargento capitula, broxa. E a repudia. Como vingança, Camila lhe conta que já tivera homem, que já não era mais virgem. Ato imediato, manda o marido que se vista e arrume suas coisas, e saem na manhã seguinte para a vila, onde tinha o estancieiro o melhor sobrado, e onde confina Camila. Entra logo na justiça eclesiástica com pedido de anulação do casamento por a mulher não ser mais virgem. Na casa, pergunta-se Camila se não era mulher de por fogo em homem, incapaz de fazer nascer o desejo. Laurinda, a fiel escrava, diz-lhe que ela é muito mulher.

Despacha o Pe. Ramiro ao sacristão, Bernardo, para que lhe entregue a documentação da abertura do processo e com a determinação que Camila não pode sair de casa e que deverá assistir às missas nos fundos da igreja, junto aos escravos.

Nesta missão de oficial da justiça, o sacristão se deixa seduzir e acaba se tornando, desde o primeiro dia, amante de Camila. Para ela tratava-se de uma questão de comprovar para si mesma que era capaz de acender o desejo do macho; para ele se tornou um paixão avassaladora.

Pe. Ramiro percebe que seu sacristão está diferente, que está de amores. Pergunta-se com quem, mas não consegue qualquer confissão do moço. E vai ele mesmo visitar Camila, por quem também fica seduzido. Aqui ambos se atraem. Camila dispensa o sacristão, quer o vigário. Está posto o triângulo, porque o marido, maioral e sargento, desaparece por completo da história. Bernardo não se conforma com a perda da amante… e Ramiro está cada vez mais apaixonada, a ponto de começar a duvidar dos credos da religião a que dedicara a vida até então, ainda que na juventude tenha conhecido mulher.

Então o ambiente da vila se reduz: o sobrado, o lado sol e luz, o lado do mundo;  a igreja com suas torres apontando para o céu mas com seus mortos enterrados sob o altar e a casa canônica onde vivem o padre e o sacristão, em guerra surda e sem palavras.

Camila urde um plano: pede que Laurinda lhe faça um vestido de noiva, com grinalda e tudo. Na noite que antecede a tragédia final, Bernardo aparece no sobrado, bêbado, pede para entrar, para voltar a ser recebido, mas é rechaçado pela antiga amante que sonha com o dia seguinte e seu encontro com Pe. Ramiro. Enquanto isso, o próprio padre desiste da resistência: vai ao sobrado e é salvo pela presença de Bernardo, vê o futuro como mais um que um dia será dispensado. Retorna para a casa canônica.

Na madrugada do dia seguinte, Laurinda corre à casa do padre pedindo-lhe que não reze missa nesse dia. O padre, no entanto, encaminha-se para a sacristia onde encontra Bernardo pronto para a celebração. O ódio, a raiva de Bernardo são quase concretas e Pe. Ramiro o sente e espera o golpe que o mataria. Mas ele não vem. Quando a missa está terminando, no “Ite, missa est” pronunciado voltado para uma nave vazia, Ramiro vê Camila entrando vestida de noiva. Ambos pensam que ela vem para si. Mas Bernardo percebe que é o preterido. Ramiro vê em suas mãos a faca de aparar as velas. Com ela, Bernardo mata Camila. Volta para a sacristia, pega o turíbulo e começa a perseguição a Ramiro, pela nave da Igreja. Fugindo, Ramiro sobe para o coro, e deste pela estreita escada, até os sinos na torre. Bernardo chega e o mata com o turíbulo, mas cai da torre na praça e também morre. Fim da tragédia…

Laurinda sai da igreja com sua dona, dizendo “eu falei para ela não vir sozinha, era perigoso, mas entendam vosmecês que ela é só donzelinha, não conhece nada da vida.”

A tragédia é trabalhada em flashback, o primeiro capítulo se iniciando com o vestido de noiva tão belo feito numa tarde, sem que Laurinda conheça os planos de sua dona. O mais inusitado é ter posto em relação amorosa uma mulher a frente de sua época, com um marido conservador, um sacristão e um vigário! Estes seriam os mais improváveis amantes no Século XVIII. Enquanto a personagem Camila seria uma improvável mulher do mesmo século: que urde, que trama, que seduz, que atrai.

Sem dúvida, se trata de um belo romance! A linguagem de Assis Brasil, como sempre, direta e aqui carregada de citações litúrgicas em latim, com o que cria o ambiente também linguístico em que circulam as personagens masculinas da tragédia. O romance merece leitura e releitura de estudos.

 

Referência. Luiz Antonio de Assis Brasil. Manhã transfigurada. Porto Alegre : L&PM Pocket, 2010, 1ª. Reimpressão, 2015. (original publicado pela mesma editora em 1982)

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.