Ler e escrever enfim

O fazer literário é algo terrível. O não fazer é ainda mais terrível.
Escolho. Isso é tão novo para mim, é preciso sempre me esconder e revelar aos poucos. Tenho medo. Essa coisa toda de mulheres negras. Cenários e espaços de fala, e muitas vozes e vezes se somam. Interessa-me mais aquelas, as que não alcanço. Não há desprezo nenhum nisso.
Leio interessante artigo de uma jovem negra, na verdade são duas: Raquel(Santana) e Carolina(Moraes), escreveram sobre o relatório da organização Internacional do Trabalho sob a ótica do direito trabalhista e a interseccionalidade de gênero e raça. O artigo a que me refiro chama 8 de março e o centenário da Organização Internacional do Trabalho. Números sempre escandalizam, fosse eu pesquisadora estaria em frangalhos, querendo entender o que querem dizer, muito embora eu saiba que os números não traduzem as narrativas, que conheço em minhas e de outras experiências.

“Se, por um lado, a conclusão do Relatório é no sentido de que a dedicação ao trabalho doméstico não remunerado influencia na qualidade dos postos de trabalho ocupados pelas mulheres, por outro, chama atenção que, no Brasil, segundo dados de 2011, enquanto mulheres brancas eram remuneradas com 70% dos valores médios da remuneração masculina, as mulheres negras auferiam o rendimento médio de 29,1% desses mesmos valores. E ainda, essas mulheres negras são as que mais ocupam profissões historicamente precarizadas, tais como o trabalho doméstico remunerado, no qual, conforme dados de 2015, a proporção de mulheres brancas que são empregadas domésticas é de 10,3 para 18 de mulheres negras.” (texto disponível na integra em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/8-de-marco-e-o-centenario-da-organizacao-internacional-do-trabalho-26032019)

Preciso alcançar aquela menina que fez um teste, prova para concorrer a uma vaga, mas fora barrada pelo cabelo armado (quem dera), pelo nariz largo, de pele retinta ou mesmo mestiça, aquela jovem exótica que não atende ao padrão do mercado. Das mulheres que cuidam das filhas e filhos de outros enquanto negligencia aos seus. Entregues a própria sorte de um estado cada vez mais omisso. Reescrevem a navalha que a carne mais barata do mercado é a negra, no mercado pós-escravagista.
São dados atuais… dados lançados numa mesa de jogatina. É sorte da conjuntura, e o azar que pode ser prorrogável por mais tempo do que aguentamos. Aguentar é uma palavra bastante forte, parece mesmo à imagem de um fio que se estica até que se arrebente fio a fio, e mais um, outro, e ainda outro e até que sobre apenas um, que de tão fino, quase invisível – tais quais nossas histórias.  
E me vejo relendo Carolina de Jesus.
Outrora posso construir uma narrativa em que alguém, mulher e negra, sem tantas oportunidades, precisa limpar a sujeira dos homens e mulheres brancas como Bettina – que acumulou um rico patrimônio investindo em ações, e recebendo pomposas doações de incentivo do pai.
Eu disse limpar? Queria dizer catar. Eu gosto da catadora. Papéis e leituras tão imbricados que parecem mesmo uma coisa só. Aquilo que botamos fora, um lixo. Descartável.
Carolina, escritora primorosa, negra e favelada, que o diga. Em seus relatos e compreensões da vida, surgem intercaladas mãe, fome, apreensões da vida, política, exclusão, crianças, fome, analfabetismo e a fome. Sim, citei fome duas vezes anteriormente, é o desejo de intensificar essa sombra que está em todo texto de Quarto de Despejo.
Revisito essa obra prima, e cada leitura é uma nova que se faz em outras possibilidades e olhares. Um trecho que antes não me marcava, mereceu destaque no meu caleidoscópio, trata de uma intimação para que ela comparecesse a delegacia, e uma vez lá, em diálogo com um policial/ delegado, ele fala da educação de seus filhos e conclui que educação pode transformar a vida das pessoas, ao que ela concorda, mas vai além e pensa que ele deveria dizer isso aos políticos e não a ela, e finaliza a sua reflexão relacionando-a fome.

“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.”

É interessante que a autora tida como semi-analfabeta, escreve e lê como poucos. É por isso mesmo que é um tanto prazeroso fazer a leitura de seus diários, e ver a ótica de uma intelectual negra a respeito do seu fazer literário e de sua vida.
A autora entende as frustrações das mulheres, as opressões. Relata cotidianos de desventuras que arrastam para vícios, violências, marginalidades, e morte. Errado pensar que ela estabelece julgamentos sobre essas questões, seus relatos muito mais do que um pedido de socorro, minto, não são um pedido de nada, esmola era outra coisa, seus textos são tentativa de organizar seu pensamento, e fazem-se denúncias de várias situações de invisibilidade.
À medida que vamos lendo, somos transformados no quarto de despejo. Talvez só os negros, talvez só os pobres. Não sei ao certo o significado deste cômodo nas casas pelo Brasil, a mim parece-me um quarto escondido, onde depositamos nossas sobras, rejeitos, quinquilharias e aquilo que ainda não podemos/queremos jogar fora. Tem uma passagem da narrativa que somos submersos nessa realidade de desumanização das pessoas, vejamos:

Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão mal colocados, para que viver? Será que os pobres de outro País sofrem igual aos pobres do Brasil? Eu estava descontente que até cheguei a brigar com meu filho José Carlos sem motivo.
…Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: é assim que fazem esses comerciantes insaciáveis. Ficam esperando os preços subir na ganância de ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados.
Não houve briga. Eu até estou achando isto aqui monótono. Vejo as crianças abrir as latas de linguiça e exclamar satisfeitas:
– Hum! Tá gostosa!
A dona Alice deu-me uma para experimentar. Mas a lata está estufada. Já está podre.
 
Ao revelar seu entendimento, que não é pouco, sobre a organização econômica e seu papel diante das misérias, torna impossível que quem lê não se sinta incomodado com a sociedade que permite tais condutas, e conclui ambiguamente que está podre.
Na trajetória de seus relatos vamos experimentado um pouco de tudo: a tentativa de calar a mulher negra – que não é pra casar –, a maternidade dos filhos bastardos, a estranheza da erudição, o assédio sexual, a objetificação do corpo negro e a recorrente amargura e desespero pela incerteza do futuro e sobrevivência, dia após dia.

“Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que Ele ficou de mal comigo?”
 
Não estamos de mal, outras vezes estamos mesmo. O bem e o mal de cada um, quando renunciamos aos nossos textos, nossas dores, nossos silêncios. É o mal que esvazia tudo, e eu consegue fazer compreensível que uns tenham fome, não me refiro àquela que alimenta a poesia, ou a escritura, mas a que nos torna insignificantes e devastados. O bem eu não sei mesmo. Talvez um desejo e um querer. E existe vida, e nossos filhos e dos outros, ah, as crianças! E assim, seguimos.
Eu sei que meu fazer não é grande literatura, já me disseram isso. Muitas vezes e vozes. E o meu mal é que não escuto sempre.

trechos extraídos de JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. 9ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2007, (Sinal Aberto).

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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