Leituras negadas (por Mara Emília Gomes Gonçalves)

Nos últimos dias, a velocidade de acontecimentos inimagináveis no cenário político brasileiro parecem querer causar um torpor ou uma letargia nas pessoas, e assim, ainda sem conseguir reagir sob o efeito de uma pancada, você ganha outra, e outra, e mais outra, e outra até que surrado você e eu, todos nós, vamos às cordas.

No meio dessa luta de rua, sem limites e sem regras, vale tudo. Pelo menos para um dos lados. Essa é a parte boa da lógica da dualidade, correto? Préééé! Errado! Ninguém é só bom ou só ruim, somos cheios de pulsações e ânimos que nos movem em vários sentidos, e nem sempre as setinhas e vetores apontam apenas para um lado, mas na maioria das vezes o conhecimento e as reflexões profundas garantem um caminho mais saudável no sentido de resguardar a nossa existência. O que não significa que a escolha do caminho, e o próprio caminho não sejam tortuosos, sempre me lembro do período em que Jesus se retira, e em meio as tentações e agonias, decide o caminho a seguir.

Como explicar o avanço do conservadorismo, a venda do setor elétrico, mulheres presas e agredidas por lutar contra a privatização das águas, apagão, assassinato de liderança política de defesa dos direitos humanos, divulgação de comentários fascistas de alguém que deveria ter equilíbrio para cuidar e zelar pelas leis e bons andamentos do país, proposta de educação no ensino médio com carga horária de 40% em EAD, revogação de livro em escola por temática africana, descoberta de que o facebook além de monitorar nossas informações, vende para companhias que alimentam propagandas presidenciáveis e sim elegeram Donald Trump e sabe lá para quem estavam trabalhando no Brasil. Não acabaram aí as porradas, temos na ordem do dia, um barraco protagonizados por suas excelências, ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barroso no STF, acredito que não preciso explicar qual seria a função desta instituição no país, mas sobre a troca de insultos é preciso fazer um, dois destaques na fala de Gilmar Mendes:

– “eu tenho vocação para mudança, eu quero mudar isso”… Mude para o congresso, consiga voto!

– Nós já temos as mãos queimadas, as nossas intervenções no processo eleitoral deram errado.

Tivéssemos tempo hábil antes do próximo solavanco, deveríamos nos ater a essas duas frases, mas o próximo round já chegou e parece-nos será dado pela recusa de um Habeas Corpus para ex-presidente Lula seguir fazendo campanha e conquistando votos, aqueles necessários para fazer as mudanças caso ganhasse as eleições, se tiver eleição e se tiver governo,  por que conforme o segundo destaque da fala de Gilmar Mendes, tendo tido uma vez as mãos queimadas, permitam-me substituir a expressão por sujas, não parece muito certo que pretendem devolver o país aos desígnios populares, então melhor que Lula não faça campanha e que se negue o HC.

Ontem recebi um presente bastante inusitado, e quero compartilhá-lo neste texto. No bilhete de felicitações, e não era meu aniversário, estava escrito com letras bordadíssimas: E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. João 8: 32. Aliás hoje estou bem religiosa, não é? Deve ser a proximidade com a semana santa, período de reflexão. Não, não ganhei uma bíblia. E não, não tinha cartão e nem estava escrito isso…, mas é como se estivesse. O presente foi à história do Acre. Vocês conhecem a história do Acre? Sabem o porquê de a capital ter o nome Rio Branco?  Bem a história é um presente, em especial para os dias atuais. Mas como disse Luís Fernando Verissimo, que amo de paixão, em sua crônica Os ovos, ao descobrirmos que uma informação não nos foi dada, ou pior foi dada errada, devíamos exigir indenização por dia de felicidade que aquela informação real nos daria.

Fato é que o mito do povo pacato, não insurgente, embora resiliente sempre me fora entregue nas aulas de história: no máximo uma balaiada, canudos, sabinada e a farroupilha que pelo desfecho para o povo negro eu dispenso.  E assim estava eu esperando as horas, acalmando o coração com minhas possibilidades hereditárias de no máximo um quilombo para chamar de meu. Porque vamos combinar que Palmares foi um bagulho bem louco!

Não a escreverei aqui a história do Acre, mas deixarei o link para os que desejarem saber um pouco mais sobre o Acre, o Látex, Rio Branco, Estados Unidos, Bolívia enfim vale muito a pena ler como o Brasil impôs uma derrota aos americanos.

https://www.infoescola.com/historia/tratado-de-petropolis/

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E por falar/escrever sobre conhecer a história, quilombo, e resiliência e também para forçar no texto uma coesão, aqueles que começam a me ler agora já devem ter notado que essa qualidade não é o meu forte, vou voltar ao assunto do livro Omo-Oba – História de Princesas, de Kiusam de Oliveira. Isso porque no texto de ontem, adiantei que hoje escreveria sobre isso. Para quem não acompanhou essa discussão é preciso dizer que o Sesi de Volta Redonda adotou a obra citada e depois retirou, alegando que alguns pais não teriam aceito o teor do livro por este tratar da história das Orixás, divindades africanas.

Muito bem, muito bem. A Lei 10.639, que é de janeiro de 2003, completou 15 anos, e trata do ensino de história e cultura afro-brasileira, torna-o conteúdo obrigatório tanto no ensino fundamental quanto no médio, em todas as escolas: instituições públicas e privadas.  Digo isso para que a gente entenda que não basta a legalidade para que haja mudança na sociedade, existe a Lei, no escopo desta, a importância de trazer as pessoas descendentes, afrodescendentes no caso, um pouco de seu legado e da forma como seus antepassados enxergavam o mundo, as tradições e as contradições, as razões, a mística, a literatura, a oralidade, a música, a coletividade.  E os pais reclamaram? Sério? E de racismo ninguém reclama não?  Porque será que eu conheço a história de Hércules? O mito de Ícaro? As teias de Ariadne? As Ninfas? Não, eu não estou reclamando. Só quero saber porque o alarme só dispara quando a cultura é da África, parecendo porta giratória do banco, não tem uma vez que passo sem parar.

E não é pouco o que este livro representa, porque é muito o que é negado, e por muito tempo. É enfim você dizer para as crianças e jovens que seus traços, sua cor, seu cabelo, sua roupa, suas danças, sua alegria, seu banzo, sua amorosidade, seu ritmo não são frutos da escravidão, não são feios, não são ruins, tampouco mascarar dizendo que as pessoas não podem ter práticas racistas porque é crime, isso é muito pouco! As pessoas precisam respeitar, entender, aceitar e conviver, e se isso exigir um esforço sobre-humano, que se faça!

Em tempos de explicitação do ódio em guetos conservadores, a educação cumpre o papel de fortalecer as pessoas, dotando-as de conhecimento. É preciso saber das dores da escravidão, das sequelas e marcas que foram deixadas resultantes das favelas e miseráveis, da marginalização dos pobres e negros, mas é preciso conhecer a força de um povo que luta, numa outra lógica, e que por isso nem sempre, quase nunca, ganha dentro da lógica branca colonial, mas resiste. E, que de outra perspectiva, conhecendo um pouco das tradições africanas, perder não é ruim, aliás, não existe bom e ruim apenas (parece muito com a gente e com tudo, não é?), mas que a cada dia precisamos buscar caminhos para o enfrentamento uma vez que existe um genocídio em curso e os demônios do fascismo a espreita.

 

Mara Emília Gomes Gonçalves escreve neste Blog às quintas-feiras.

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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