LEITURA, UMA OFERTA DE CONTRAPALAVRAS

Aprendemos com o poeta que a luta com as palavras é vã e, no entanto, como o poeta, quase todos nós passamos os dias diante das letras que outros traçaram e que nossos olhos acompanham enquanto nossa mente se desloca de um espaço para outro, ou com as letras traçamos nós mesmos linhas que pretendemos ir deixando vestígios de nosso trabalho constante, incansável. Condenados a significar, por sermos “seres viventes dotados de palavra”, na recuperação que faz Larrosa (2001) da fórmula grega zôon lógon échon, em que lemos juntos a leitura autorizada e legitimada como literal “homem dotado de razão”, estamos sempre às voltas com as palavras e com elas vamos construindo para nós mesmos e para os outros os sentidos do que vemos, tocamos, ouvimos: nos espaços, os homens, as coisas e suas relações são temporalizados pelas linguagens com que referimos e interpretamos o que nos acontece.

Ainda é possível falar sobre a leitura, com tantas palavras já em circulação, com tantos discursos já proferidos, com tantas vozes que, já tendo falado, esperam que outro as retome para dar-lhe continuidade? Três vozes retornam à memória do leitor, para oferecer, a seus modos, traços com que fugir dos começos sempre trágicos (Barcena, 2001). Na voz do poeta

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro, de um outro galo

que apanhe o grito que um falo antes

e o lance a outro, e de outros galos[

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

(João Cabral de Melo Neto, 19677, p. 15)(2)

 

Na voz do filósofo

O desejo diz: “Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calam, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz”. E a instituição responde: “Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que lhe advém”. (Foucault, 1970:7)

Na voz do crítico

Maníaco ou melancólico, o sujeito da escrita está condenado ao Outro e às bordas de seu texto. A escrita, como experiência do próprio, revela-se antes um processo de confronto com o texto alheio. Nela se pratica, pois, o conflito de identidade.

Se, para que a escrita advenha e subsista, ela assente sempre num processo de amnésia, no sentido em que ultrapassa a fixação na fobia do já-dito, a experiência do plágio sofre, pelo contrário, de um peso excessivo da memória. Enquanto o sujeito que se afirma como autor trabalha num processo de afirmação da sua voz por entre as vozes alheias, o plagiador deixa-se sempre seduzir ou abafar por uma voz outra. O autor esquece e por i8sso produz. O plagiador fixa(-se) e por isso re-produz. (Babo, 1987:32)

 

Esquecendo, portanto, o já-dito, retomando o canto para que ele continue com uma entonação outra e desconfiando do pré-paro do discurso pelas instituições, a ideia que gostaria de trazer aqui é a de pensar a leitura como uma oferta de contrapalavras do leitor que, acompanhando os traços deixados no texto pelo autor, faz estes traços renascerem pelas significações que o encontro das palavras produz.

Para pensar a leitura a partir desta perspectiva, é preciso enfrentar um problema de construir no fluxo das instabilidades uma estabilidade e confessá-la ao Outro como uma posição provisória que permite propor a hipótese. Eis pois esta posição: instaurar a linguagem como um processo de contínua constituição e, por isso, sobre a precariedade que a temporalidade específica dos momentos implica. E se o sujeito emerge no mundo discursivo e nele sua consciência se constitui, a precariedade do provisório é também, pelo funcionamento próprio da linguagem, uma característica da subjetividade. Não há, para nos garantir, um terreno estável, nem um sujeito pronto e acabado que se apropria da língua (ou de um lugar preparado) ao falar/escrever, nem uma língua (no sentido sociolinguístico do termo, que implica portanto e desde sempre a multiplicidade na unidade aparente) pronta e acabada. Sobra-nos, neste sentido, apenas o evento discursivo, que se dá na linha do tempo e que só tem consistência enquanto “real” na singularidade do momento em que se enuncia. A relação com a singularidade é da natureza do processo constitutivo da linguagem e dos sujeitos do discurso. Evidentemente, os acontecimentos discursivos, precários, singulares e densos de suas próprias condições de produção, fazem-se no tempo e constroem história. Estruturas linguísticas que inevitavelmente se reiteram também se alteram, a cada passo, em sua consistência significativa. Passado no presente, que se faz passado.

Para dar conta desse movimento entre estabilizações e instabilidades, Bakhtin (1929-1981) opõe dois conceitos: aquele da significação e aquele do tema. Se considerarmos que uma língua é um conjunto instável de recursos linguísticos com que construímos representações com “acentos apreciativos” (portanto, nunca neutros), cada um desses recursos traz em si “os murmúrios de sua própria história” condensados como suas significações, que se apresentam a cada uma de suas reiterações. E nessas reiterações do “aqui e agora” da enunciação, esses mesmos recursos se desvestem de suas significações para se revestirem com as vestes que lhe traz o tema específico e único de cada enunciação.

Falar ou escrever é uma “luta” com os recursos linguísticos porque, vindo carregados de suas memórias, ainda assim se tornam maleáveis na singularidade do evento discursivo. Trata-se, portanto, de construir com recursos “imperfeitos” algum sentido, que não se reduz à unidade. Do ponto de vista da produção, nesta luta vã, o máximo que conseguimos é deixar rastros a serem manuseados pelo leitor, sem que possamos delimitar o que cada um de nossos traços consegue fazer emergir. Se do ponto de vista do funcionamento da linguagem qualquer de seus usos sempre traz em si processos de (in)determinação, do ponto de vista do trabalho linguístico, é possível apontar dois polos: aquele que explora os recursos linguísticos para produzir um fechamento de sentidos e aquele que explora a característica própria destes recursos para aumentar as possibilidades de sentidos. De um lado o trabalho linguístico pragmático e referencial; do outro lado, o trabalho linguístico estético da poesia e da literatura.

Como a palavra lida é sempre o momento e lugar da ‘stantartização’ de muitas outras palavras do leitor, suas contrapalavras, a compreensão resulta não do reconhecimento da palavra aí impressa, aí ouvida, mas do encontro entra a palavra e suas contrapalavras (na metáfora bakhtiniana, na faísca produzida por este encontro). Dada a impossibilidade de prever quais as contrapalavras que virão a esse encontro, porque elas para ele comparecem segundo os percursos já percorridos por cada diferente leitor e seus inumeráveis momentos da leitura, é impossível prever todos os sentidos que a leitura produz. Por isso, um texto, uma vez nascido, passa a ter histórias que não são a reprodução de sentidos sempre idênticos a si mesmos. E por isso, ler, esta operação de caça,

 

… é peregrinar por um sistema (o do texto, análogo à ordem construída de uma cidade ou de um supermercado). Análises recentes mostram que “toda leitura modifica o seu objeto”, que (já dizia Borges) “uma literatura difere de outra menos pelo texto que pela maneira como é lido, e que enfim um sistema de signos verbais ou icônicos é uma reserva de formas que esperam do leitor o seu sentido (Certeau, 1994:264) (3)

 

Um leitor que não oferece às palavras lidas as suas contrapalavras, recusa a experiência de leitura. É preciso vir carregado de palavras para o diálogo com o texto.  E essas palavras que carregamos multiplicam as possibilidades de compreensões do texto (e do mundo) porque são palavras que, sendo nossas, são de outros, e estão dispostas a receber, hospedar e modificar-se face às novas palavras que o texto traz. E estas se tornam, por sua vez, novas contrapalavras, nesse processo contínuo de constituição da singularidade de cada sujeito, pela encarnação de palavra alheias que se torna nossa pelo esquecimento da origem (Bakhtin, 1974:405-406).

 

Leituras

Kholstomer, o cavalo bragado que à noite narra aos demais cavalos a sua história, na segunda noite ele reflete sobre os costumes dos homens de se apropriarem das coisas, justamente quando está narrando sua passagem de potro a cavalo, pela prepotência do gesto humano de dessexualização dos animais:

As palavras meu cavalo pareciam-me tão ilógicas como a minha terra, meu ar, minha água. Aquela frase fez em mim nada menos que uma impressão profunda.

Refleti depois, e só daí a(sic) um tempo, depois de conhecer os homens por ter com eles lidado, é que pude compreender bem tudo aquilo.

Os homens – ora vão lá vendo! – costumam se guiar não por fatos, mas por palavras. À possibilidade de falar de tal ou tal objeto, nos termos de antemão por eles convencionados. E esses temos, que para eles têm uma enorme importância, são os seguintes: o meu, a minha, os meus. Eles os empregam falando dos diferentes seres vivos, da terra, dos homens, dos cavalos. É comum, também, ao falarem de um objeto, uma só pessoa qualificá-lo de meu. A pessoa que tem a possiblidade de aplicar a palavra meu  a um grande número de objetos, é considerada pelas outras como a mais feliz.

[…]

Um homem diz: minha casa e ele não mora nessa casa, apenas trata de construí-la e de conservá-la; um lojista diz a minha loja e nunca põe os pés nela, ou o meu armarinho e nunca tira dali um só metro de fazenda para as suas necessidades. Há homens que dizem: minha terra sem nunca a terem visto; há entre os que empregam a palavra meu, aplicando-a a seus semelhantes, a seres humanos que eles nem mesmo conhecem e aos quais fazem todos os prejuízos possíveis e imagináveis. Eles dizem também minha mulher falando de uma mulher que consideram como sua propriedade, mas que muitas vezes vive com outro homem. O fim principal que se propõem os homens, não é fazer aquilo que julgam o bom e o justo, mas ter a possibilidade de aplicar a palavra meu a um grande número de objetos; e eu estou agora convencido que essa a diferença fundamental que existe entre nós e os homens. (Tolstoi, História de um cavalo)

 

Também com as palavras acontece o jogo desse poder: qualifica-las como de minhas, pelo esquecimento da origem, permite também que nas relações sociais instaurem-se aqueles que, na relação de forças próprias às relações de poder, acabam utilizando o texto para fechar seus sentidos impondo-lhe um sentido, a que denominam de “literal”.

 

Deste ponto de vista, o sentido “literal” é o sinal e o efeito de um poder social, o de uma elite. Oferecendo-se a uma leitura plural, o texto se torna uma arma cultural, uma reserva de caça, o pretexto de uma lei que legitima como “literal”, a interpretação de profissionais e de clérigos socialmente autorizados. (Certeau, 1994 : 267)

 

Um modo de insurgir-se contra os sentidos que as leituras privilegiadas impõem, privilegiadas porque realizadas por sujeitos privilegiados, é retomar os modos de funcionamento da linguagem, tomando cada compreensão como produto instável de nosso trabalho, pois tal trabalho é executado com palavras que, sendo nossas, não nos são próprias e por isso mesmo estão sempre admitindo uma adição de sentidos outros que desestabilizam as provisórias interpretações que fazemos.

Tomando outra metáfora emprestada, as palavras funcionam como aquela máquina que os viajantes perdidos encontram na sexta ilha a que aportam:

 

Aportaram depois numa Sexta ilha, ainda mais ao oeste, onde todos falavam incessantemente entre si, um contando ao outro o que ele desejava que o outro fosse, e vice-versa. Aqueles ilhéus realmente podiam viver apenas se fossem narrados por outros; quando um transgressor contava outras histórias desagradáveis, obrigando-os a vivê-las, os outros não contavam mais nada a seu respeito, e assim ele morria.

Mas o problema deles era inventar para cada uma história diferente; com efeito, se todos tivessem tido a mesma história, não poderiam mais se diferenciar um dos outros, porque cada um de nós é aquilo que os seus atos criaram. Eis a razão por que tinham construído uma grande roda, que denominavam Cynosura Lecensis, erguida na praça da aldeia: era formada por seis círculos concêntricos que giravam cada qual por sua própria conta. O primeiro era dividido em vinte e quatro casas ou janelas; o segundo, em trinta e seis; o terceiro, em quarenta e oito; o quarto, em sessenta; o quinto, em setenta e dois; e o sexto, em oitenta e quatro. Nas várias casas, segundo um critério que Lilia e Ferrante não tinham conseguido entender em tão breve tempo, estavam escritas ações (como ir, vir ou morrer); paixões (como odiar, amar, ou sentir frio); e depois modos como bem e mal, tristemente ou com alegria; e tempos e lugares, como por exemplo, na própria casa ou o mês depois.

Fazendo girar as rodas obtinham-se histórias como “foi ontem para casa e encontrou o seu inimigo que sofria, e o ajudou”, ou então “viu um animal com sete cabeças e o matou”. Os habitantes asseguravam que com aquela máquina podiam escrever ou pensar setecentos e vinte e dois milhões de milhões de histórias diferentes, e havia-as para dar sentido à vida e cada um, durante os próximos séculos. (Umberto Eco, A ilha do dia anterior, p. 429-430).

 

Notas

  1. Normalmente estou sempre devendo textos, desde sempre! E escrevi (e continuo a escrever) em geral porque há algum evento de que devo participar, ou porque algum amigo me pediu um texto.. Este não é diferente. Foi escrito para minha participação na mesa-redonda “Ler é traduzir” no 13º. COLE, realizado em julho de 2001. Ele foi publicado em Educar em revista 20, Curitiba, Universidade Federal do Paraná, 2002:77-85. Republicado In. Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. O Espelho de Bakhtin. São Carlos : Pedro & João Editores. 2007, p. 39-46.
  2. O poema é parte do livro Educação pela Pedra, com poemas de 1962-1965. Cito aqui a edição da Antologia Poética (Cf. Melo Neto, J. C. Antologia Poética, Rio de Janeiro : Sabiá, 1987).
  3. O autor remete, em suas notas 8 e 9, às seguintes referências: Charles, M. Rhétorique de la lecture. Paris :Seuil, 1977, p. 83; e Jorge Luís Borges, citado em Genette, G. Figures. Paris : Seuil, 1966, p. 123.

 

Referências

Babo, M. A. A escrita: uma paixão devoradora? Revista de Comunicação e linguagens, n. 5, p. 29-44, 1987.

Bakhtin, M. (Volochinov) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo : Hucitec, 1981.

_________ Observações sobre a epistemologia das ciências humanas. In. Bakhtin, M. Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes, 1992.

Certeau, M. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis : Vozes, 1994.

Eco, U. A ilha do dia anterior. Rio de Janeiro : Record, 1995.

Foucault, M. A ordem do discurso. São Paulo : Loyola, 1996.

Melo Neto, J. C. Antologia poética. Rio de Janeiro : Sabiá, 1967.

Tolstoi, L. História de um cavalo. In. Tosltoi, L. Senhor e servo. São Paulo : Clube do Livro, 1953.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.