Leitura obrigatória do Geraldi: do desabafo ao agradecimento.

Esse texto não é um pedido de desculpa, mas deveria. É verdade que é um texto que deveria ter sido escrito na semana passada, mas a gente acaba cedendo primeiro para a preguiça e depois aos infortúnios cotidianos.

Ninguém lida muito bem com crítica, pode ser que algumas pessoas lidem, e são pessoas mais nobres e elegantes, eu não lido. Digo isso porque na última semana, tive um resultado muito positivo sobre uma avaliação e algumas pessoas carinhosamente me lembraram de outro momento em que não fui bem avaliada, parecia mesmo uma resposta.  Confusa que sou, ler sobre o fracasso anterior, fez com que essa negativa se sobrepusesse ao momento de comemoração e alegria, enfim reavivou as lembranças de críticas e o momento de muita tristeza em que fui violentamente agredida sobre o critério de avaliação da minha escrita.

Por isso não é um pedido de desculpas, sendo. Aprendi a não me desculpar mais.  Antes prefiro explicar e justificar o porquê da ausência do texto. Assim faço-o, acrescentando que escrever exige muita força eu não estou falando de força física. Por mais que eu que eu precisasse escrever, não saía. E em uma espécie de mantra comecei a repetir para mim inúmeras vezes que a minha escrita é resistência, a minha escrita é resistência, a minha escrita é resistência, e porque eu fui sentindo que era resistência é que eu precisava resistir.

Eu não sei o significado etimológico da palavra resistência, mas mesmo correndo o risco de escrever uma bobagem, vou lançar mão da cumplicidade que tenho com meus leitores para dizer do que acredito: resistência tem uma relação muito próxima de reexistir, toda vez que somos impelidos à resistência, é como se a gente renascesse à vida, ressignificando todos os obstáculos e desafios, e por fim conseguisse uma nova existência.

Além da cumplicidade, é preciso fazer justiça com a literatura, quando eu faço essas possibilidades linguísticas, me lembro do poeta Manoel de Barros ou de Guimarães Rosa, dois amores que me ensinam a partir da simplicidade, do popular para o erudito, do nada para o tudo, do esvaziamento de sentido para a plenitude das emoções. As palavras elas nos dão morte para vida, a manipulação das palavras, tal qual jogos de crianças, nos faz senhores da nossa vida eu penso que não à toa eu não escrevi na quinta-feira.

Na sexta-feira, leio um texto do professor Wanderley Geraldi, sobre ensino de língua portuguesa:

Por isso, a aquisição da linguagem, como salienta Bakhtin (1974), dando-se pela internalização da palavra alheia (especialmente da mãe) é também a internalização de uma compreensão de mundo. As palavras alheias vão perdendo suas origens (ser do outro), tornando-se palavras próprias (internas) que utilizamos para construir a compreensão de cada nova palavra. Por isso a língua não é um sistema fechado, pronto, acabado de que poderíamos nos apropriar. No ato de falarmos, estamos participando do processo de constituição da língua.

Entendamos o sentido que estamos dando à expressão palavra. Por certo, trata-se de cada item lexical, mas trata-se de muito mais: das formas internas de cada palavra (os morfemas) cujo conhecimento revelamos na construção de novos itens lexicais (todos nós já convivemos com crianças que combinam diferentes morfemas e constroem novas palavras, como, por exemplo, infantilice, com base em meninice); das formas de combinar itens lexicais para construir frases (combinações diferentes na oralidade e na escrita); das formas de construir textos cada vez mais complexos (muito antes da escola, aprendemos a narrar, a descrever objetos, a defender pontos de vista).

 

E eu fiquei muito feliz com esse texto, vou deixar o link aqui para a leitura de todos vocês: (https://blogdogeraldi.github.io/construcao-de-um-novo-modo-de-ensinar-e-aprender-a-lingua-portuguesa/ )  porque é um texto que muito mais do que a seleção para a qual fui aprovada, fala sobre a que outra, na qual fui reprovada. Em outro momento, escrevi um projeto bakhtiniano em essência, sobre a importância de trazer para sala de aula e para as aulas de língua portuguesa textos que se aproximassem do universo dos alunos, entendendo que a língua é constitutiva dos sujeitos, era preciso repensar a minha prática pedagógica, de modo que as produções escolares dentro da disciplina de língua portuguesa alcançassem uma maior e melhor eficiência e qualidade.

Isso porque na minha prática em sala observava que os textos normalmente utilizados, escolhidos pelo professor ou mesmo pelo material didático adotado apresentam a apenas uma variedade linguística e cultural como regular, convencional, e de prestígio e não uma escolha dentro de uma diversidade, e que escolha é fruto de uma estrutura social desigual que tem como pano de fundo o silenciamento de uma classe social.

No processo de constituição de identidade, da teoria bakthiniana, assume-se que a linguagem é dialógica, isto é, é a própria linguagem que carregada de seus sentidos encontra sentido no discurso do outro, que por sua vez também é reflexo de vários discursos que são adaptados, incorporados/atravessados aos seus, assim sendo o uso do texto que tenha identidade com os alunos, ao se materializar nas trajetórias presentes em sala, e apresentar a variante da linguagem, própria de hábitos e comportamentos sociais de um grupo, permitiriam ao aluno partir da sua experiência e ideologia para a reflexão sobre a própria língua e sobre aquisição de outras variantes e o empoderamento disto.

Em resumo, uma máscara bonitinha para trazer para sala de aula músicas dos Racionais entre outros grupos de rap e hip hop e outras manifestações culturais dos segmentos populares.  Paixão é paixão, e “um lance é um lance” como diz a música sertaneja, fato é que ciência, para mim, deveria ser feita com paixão.  Não deu certo. E lendo o texto do professor Geraldi, parece que de novo daria certo, eu não estaria assim tão errada.

Como aprendemos a língua no convívio com os outros, a variedade linguística que assimilamos é aquela falada em nosso grupo social. Como a repartição dos homens numa sociedade não é absolutamente sem consequências, o acesso aos bens da herança cultural do passado se dá de forma diferenciada. Entre esses bens é preciso incluir os diferentes modos de conceber a vida. Aprender uma variedade linguística é também aprender um sistema de referências.

Acredito que outros textos e outras literaturas, em especial as chamadas literaturas marginais, (em outro momento podemos discutir sobre a identificação semântica do termo marginal) são capazes disso.  Mas o que eu percebo é que muitos jovens se sentem tolhidos e excluídos de um processo de produção escrita uma vez que as produções trazidas para o ambiente de letramento e estudo como referenciais, para que eles conheçam e identifiquem como de qualidade, se opõem as suas produções e porque não dizer constituições.

Assim como eu me senti quando recebi uma avaliação de que minha escrita estava muito longe do aceitável penso que os alunos quando recebem retornos negativos de suas produções, avaliações que colocam seus textos à margem, cobertos pelo manto do erro, ou, quando há alguma complacência, sob o olhar dos desvios sofrem e têm como resultado o apagamento de suas identidades dos ambientes escolares, e de prestígio social da sua variedade linguística, de forma que sua compreensão sobre o aprendizado da língua portuguesa torna-se algo muito distante e mesmo inatingível sobre o ponto de vista da apropriação de um sistema de referência que não é o seu, mas que poderia.

O estranhamento da uma criança de grupos sociais desprivilegiados, ao entrar pra a escola para aprender a ler e a escrever, resulta também do fato de que os modos de compreender o mundo e falar são diferentes dos modos a que se habituara. Não se pense, no entanto, que a diferença bloqueie as possibilidades de aprender. Numa sociedade, até para que o poder se exerça, há vasos comunicantes entre uma e outra variedade. O mesmo aluno que fala diferente é capaz de compreender textos expressos na variedade considerada certa.

Essas são as perspectivas que devem iluminar as práticas de leitura, de produção de texto e de análise linguística no ensino da língua portuguesa, desde que se queira efetivamente ampliar o número de pessoas que leem e escrevem em nossa sociedade. E ampliar esse número significa ampliar o exercício da cidadania, com o mais adequado preparo para o trabalho: aquele em que cada um aprende a aprender.

Uma vez morto, a resistência precisa ser ainda reconstituída, e não é isso mesmo de reexistência? Enquanto a morte for certa, mas simbólica cabe sempre às reinvenções, à luta, e de novo se colocar de pé.

Durante todo o texto pensei umbilicalmente em mim, juro! Mas devo confessar que muitas vezes minto. Então agora, ponho os meus olhos em Curitiba, e vejo uma vigília resistente, leio ainda sobre o show do Gog e do Rincón Sapiência, que poderiam ter músicas trabalhadas em sala de aula, quanta riqueza e vejo que eles se desfazem das vaidades e de ser quem são para se posicionar junto à resistência do seu povo, dos pobres e trabalhadores, trazem para os seus palco a resistência do momento, a maior delas: Lula livre.

Permito-me pensar ainda uma vez em Lula. E em como seu ato me educa enquanto professora a ajudar que meus alunos sejam resistentes.

E sim, Lula se entrega a prisão em um ato de resistir, e de constituir pela linguagem em milhões de Lula, que se recriam cotidianamente, em frente às mortes, a despejos, a samba-canções, a fome, traições, amores, assassinatos, Marielle, Marcos Vinicius, ao preconceito, silêncios e silenciamentos. Ninguém pensa que preso Lula se faz denúncia de suas milhares de existências pelo país a fora: de como alguns querem calar sempre os que podem menos e são pobres. E de uma cela, ele organiza os significados de lutar e resistir.

Ainda uma vez, obrigada Wanderley Geraldi.

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

follow me