Le temps et l’autre, de Emmanuel Levinas

O que me levou a estudar este livro foi o “l’autre’ do título: sempre tenho interesse em saber algo sobre o conceito de alteridade, já que ele é muito importante para os estudos bakhtiniano. Portanto, foi Bakhtin que me levou a Levinas. O texto é difícil. E há muito já não lia em francês… duas dificuldades ao mesmo tempo: da língua e da filosofia de Levinas.

Acrescentemos o que diz o próprio autor como uma terceira dificuldade: o texto é uma transcrição de três conferências proferidas no Collège Philosophique fundado por Jean Wahl. Os tempos eram aqueles do pós-guerra (no caso, 1948) e no Collège se exploravam aberturas, possibilidades, normalmente aprofundadas em obras posteriores. O autor, ao decidir uma publicação independente destas três conferências, não fez alterações. No prefácio remete a outras obras em que aprofundou alguns dos conceitos aqui trabalhados em situação de fala, com seus torneios e sintaxes próprios.

Da minha leitura – insisto aqui que não é a leitura de um filósofo – retiro três questões que me parecem fundamentais, uma relativa ao ‘ser’, outra relativa ao ‘tempo’:

  1. A ‘hypostase’ é o acontecimento pelo qual o existente contrata seu existir. Para defender este ponto de vista, o autor toma como ponto de partida um “il y a”, um existir anônimo em que o ser concreto, o sujeito, se faz existente.
  2. O tempo é uma relação do ‘si inassimilável’ com o que (ce qui) é absolutamente outro, que não se deixa assimilar pela experiência ou o que (ce qui) em sua infinitude não se deixa com-preender.
  3. Ao ter o domínio do existir, o existente inevitavelmente se liga a si mesmo, não pode abandonar a si mesmo. Assim, sua liberdade no existir é de imediato limitada pela responsabilidade por si mesmo: “este o grande paradoxo do ser livre: um ser livre já não é mais livre porque é responsável por si mesmo”.   

Se compreendi razoavelmente o texto, a admissão deste ‘ce qui’, este existir dentro do qual penetramos e passamos a ter um domínio, isto é, nos fazemos sujeitos, não remete a um “espírito de época’, a um ‘modo de viver’, mas a uma relação da solidão e unicidade do sujeito com a própria existência, que implicará um contínuo retorno a si mesmo. E nesta relação sempre num tempo presente (o passado é um presente como lembrança) se constitui a identidade do sujeito consigo mesmo. O futuro será sempre algo projetado (e por isso mesmo, um presente) de que efetivamente o existente não tem domínio: o futuro é o outro! Ele não se deixa dominar, ele não se deixa pegar: ele nos sobrevêm, e nossas projeções são apenas projeções e não garantias de domínio.

Para demonstrar esta tese, na segunda conferência Levinas tomará a morte como este outro inassimilável, como Mistério. O outro que a morte representa e com o qual estamos sempre em contato não é dominada por nós, nela somos passivos. Ela nos acontece. Por isso representa uma alteridade que não deixa prender, tomar, dominar.

O segundo grande campo em que se demorará para sustentar suas principais teses será o amor: o amor é gratuito, ele nos acontece. Novamente aqui somos passivos, sem domínio. E a alteridade a que apontará o autor será “o feminino” não como uma mulher concreta, mas no mistério do feminino que como tal atrai e trai nosso domínio: o feminino não deixa pegar, é uma alteridade radical que também reside em nós próprios.

Neste sentido, a diferença de sexo não será tomada simplesmente como se ela fosse o mesmo que o eu, mas como perpassada pela feminilidade misteriosa que nos toma quando o amor acontece. Na solidão do ser cada um é, e nenhum se deixa pegar.

Ora, no sexo e no amor há a fecundidade, o que leva a um terceiro componente: a paternidade (ou maternidade) de que resulta um Outro que não me é assimilável, no qual permaneço, no qual estou, mas que não é um ‘eu’, e sim um radical outro. E eis aí um fundamento da alteridade concreta: enquanto existentes passamos a dominar o existir, mas no existir a alteridade se impõe e não temos qualquer domínio sobre ela. Nos pontos de reflexão do autor, as alteridades radicais serão a morte (o mistério de um devir que nos acontecerá e em que somos passivos), o feminino (com a radicalidade que representa o que é desejado como posse e que sempre escapa) e a fecundidade que leva a outro existente que sendo nossa permanência é radicalmente outro.

Isto não é um resumo da argumentação do autor, o que seria impossível. Esta é uma leitura de um texto difícil, mas que leva a pensar sobre a radicalidade da alteridade, não simplesmente pensada como outro idêntico a si próprio, mas como aquele que jamais se deixará pegar como objeto do eu. Um ‘tu’ radicalmente outro.

Para fazermos uma analogia – uma analogia de linguista – a linguagem (e a língua em seu sentido sociológico) é um existir, um ‘ce qui’ anônimo, eterno (enquanto dura), dentro da qual nos constituímos existentes, sujeitos: dominamo-la no presente das enunciações, tomamo-la como nossa (o existir) mas não temos álibi para nos escusarmos da responsabilidade pelo dizer. E esta responsabilidade é para com o outro, não apenas como parceiro de um processo de comunicação, mas como um devir sobre o qual não temos domínio, temos no máximo uma projeção. E neste devir estará nosso dizer. Daí deriva a responsabilidade que em Levinas aparece como responsabilidade sobre si próprio, um limite à liberdade, mas que não pode ser compreendida como uma indiferença: porque aos ‘filhos’ (a paternidade/maternidade também do dizer) não de pode ser indiferente: “Não-indiferença pela qual um Eu é possível para além do possível”. Um Eu que encontra a alteridade radical do mistério da morte e que no entanto permanece no “existir” anônimo e eterno, em que se fez existente num tempo limitado mas que permanece como algo que não se deixa com-preender.

Infelizmente, ao menos nestas conferências, para além de remessas esporádicas à comunicação, mas não exploradas filosoficamente, Levinas não trata da linguagem, uma necessidade também para sua filosofia porque o retorno sobre si mesmo, a relação entre o Moi e o Soi demanda a existência de uma linguagem.

Referência. Emmanuel Levinas. Le temps et l’autre. Paris : Presses Universitaires de France, 1983.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.