Le roman policier, de Roger Caillois

Este livro do estudioso das ciências humanas (O homem e o sagrado – onde encontrei um texto brilhante sobre a festa que usei em cursos de estudos do trabalho de Bakhtin sobre Rabelais – O mito e o homem, Os jogos e o homem) também exerceu a crítica literária. E neste volume estuda a estrutura típica do romance policial.

O longo subtítulo – “como a inteligência se retira do mundo para se consagrar a seus jogos e como neles a sociedade introduz seus problemas” – revela a tese do livro: a investigação do detetive sempre recoloca ordem em seu devido lugar, nenhum crime fica sem castigo e a harmonia social, com o criminoso sendo entre aa braço da justiça, tudo volta ao seu lugar:

… tudo leva a perguntar se a polícia foi criada para o mundo ou o mundo para a polícia, hipótese inverossímil já que nas primeiras linhas do Gênese, quando se diz que o Espírito de Deus planava sobre as águas, é evidente que é da polícia que se quer falar. Esta teologia não é gratuita nem deslocada como parece. O romance policial representa muito bem a luta entre o elemento da ordem e o elemento da turbulência, cuja perpétua rivalidade equilibra o universo. Na sociedade, o antagonismo da lei e do crime a figura-a. Por isso o detetive e o assassino aparecem como campeões de dois princípios distintos para os quais cada um tem sua inclinação: aquele que leva a cometer infração e aquele que busca reprimi-la . Do mesmo modo o indivíduo tende a ora a se disciplinar, ora a se soltar. (p. 69-tradução minha)

Em sua análise, o autor traz para o texto inúmeros autores de romances policiais e suas personagens e vai estabelecendo a estrutura sempre comum a estes romances: aparece um cadáver sem que de imediato seja possível encontrar qualquer pista, qualquer vestígio. A partir daí aparece a ‘criatividade’ do autor (e um dos lugares comuns é o cômodo estar fechado por dentro, janelas e portas…): a polícia enquanto tal nada percebe, se perde buscando alguma saída em suas investigações mal sucedidas, mas então aparece o detetive, em geral um investigador diletante, racional, charmoso que se desloca por inúmeros lugares, refaz o percurso do criminoso, enxergando pistas – e encontrando, frequentemente, belas mulheres com relacionamentos ocasionais mas jamais se deixando levar por emoções, por sentimentos: sempre seu raciocínio brilhante, sua perspicácia, sua frieza lógico-matemática se impõem.

E assim, a partir de um elemento invisível para os demais, o detetive no final do romance recompõe passo a passo os tanto os antecedentes que levaram ou motivaram o crime, como sua execução e os posteriores despistes produzidos pelo criminoso – que às vezes desviaram por algum tempo o detetive.

Com tal estrutura que se repete ao infinito, duas genialidades estão sempre em confronto: a do delinquente e a do detetive. A arte consiste em não entregar com antecedência nem os passos do delinquente nem a dedução lógica do raciocínio potente do detetive (genialidade raramente atingida por ‘enlatados’ filmes policiais das tevês).

Genial ou não, com muitos desvios na investigação ou não, com criminoso mais ou menos inteligente, vinculado a uma seita ou a ritos de morte ou não, a verdade é que o leitor – e o telespectador – sabe de antemão que o mistério será desvendado, que o criminoso será encontrado, que a ordem será recomposta. Não há crime perfeito! Pode haver criminosos que escapem ao castigo, mas de uma ou outra forma, o equilíbrio será restabelecido.

A ordem sempre restabelecida, mantida, produz uma dupla catarse: vê no criminoso a desordem que não se atreve a trazer para seu cotidiano (e esta desordem aqui seria apenas a desobediência à mesmice da rotina imposta pela organização social) e por isso com ele se solidariza e, muitas vezes, torce contra o ‘detetive’, mas por fim reencontra o equilíbrio social, segunda catarse, que lhe dá a garantia de sair no dia seguinte para cumprir suas obrigações, sob o olhar vigilante da polícia, do detetive e de Deus, olhares de que não poderá se esconder porque mesmo o criminoso genial deixa a estes olhares alguma pista. Resultado: o medo de reverter, de revolucionar o estabelecido porque o poder soberano da ordem, com o qual aparentemente se equivale o poder ‘revolucionário’, sempre se mostrará no final mais eficaz, mais perspicaz e, de fato, superior. E é para mostrar esta superioridade que desvios devem acontecer, pois estes sempre serão exemplares do que não pode ser!

Referência. Roger Caillois. Le roman policier. Buenos Aires : Editions des Lettres Françaises. 1941.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.