Todos los escritores son ciegos – en sentido alegórico a la Kafka – no pueden ver sus manuscritos. Necesitan la mirada de otro. Una mujer amada que lea desde otro lugar pero con sus propios ojos. No hay forma de leer los propios textos sino es bajo los ojos de otro. (Ricardo Piglia. El último lector)
A dificuldade inicial para escrever este texto tem a ver com a relação entre a fala e a escrita. Para alguns, parece simples transformar o que se falou em um texto escrito. Para mim, não é. Ao contrário, é extremamente complicado, porque é necessário ao mesmo tempo dar conta da interlocução que houve e prever outras interlocuções possíveis.
Tenho falado muito com meus colegas professores, por todos os recantos deste Brasil. E tenho aprendido muito com suas perguntas, com seus olhares, com suas angústias. Aliás, talvez não teria escrito os textos que escrevi se não tivesse assumido como meus os sofrimentos que enxerguei nestas andanças.
Pois este texto é produto de mais uma andança: uma conversa no Rio, mais especificamente na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. É um texto que vai ter que dar conta de emergir de uma fala. Por isso ele ganha este título de três labutas: aquela da fala face a face, com os colegas que ajudam com seus olhares, com seus meneios de cabeça, com suas histórias; esta outra labuta solitária da leitura de uma transcrição, uma leitura que assusta porque de repente a gente se pega dizendo menos ou mais do que poderia ser dito e os sentidos sempre fluem, escapam pelas palavras; por fim esta labuta de escrever, de tornar escrito o que se aprendeu nas andanças tantas, em que a gente fala o que outros nos ensinaram, nada mais do que isso.
Vygotsky muito sabiamente começa seu livro Teoria das Emoções, remetendo a um enunciado de Goethe: certas ideias amadurecem em determinadas épocas como os frutos que caem das árvores simultaneamente em distintos pomares. Em minha história de trabalho, tenho tido a sorte de estar por perto das árvores quando os frutos caem. Talvez porque nunca tenha recusado estar atento ao diverso, ao não comportado, ao que circula na academia, mas também ao que viceja no mundo da vida prática. De modo que o leitor somente encontrará neste texto o que já é conhecido, e tantas vezes reformulado nestes diálogos sem fim que fazem nossas vidas.
Se aqueles que escrevem necessitam dos olhos de um outro para que seus próprios textos encontrem sentidos, produtos desta atividade ora “criminosa” que usa os textos em seu benefício, ora “recriadora” porque permite encontrar conexões perdidas no momento do vivido, é possível a todos nós imaginar como se sentem aqueles que, tendo falado para um grupo de pessoas, reencontram sua fala transcrita segundo uma escuta, e sobre esta transcrição debruçam-se para se lerem com o objetivo de transformarem o que agora leem, nas palavras que proferiram, num texto legível para outros tantos, ausente e distantes.
É desta experiência mais ou menos sofrida que nasce este texto, agora sob sua leitura. E, das condições de sua produção, pretendo que os rastros permaneçam de modo que nele se encontrem, em primeiro lugar, um pouco da situação de interlocução sobre um tema bem conhecido, bastante visitado e cuja exposição não foge a algumas características didáticas de uma aula.
Registro, pois, o projeto de um exercício, que se fará na caminhada e que não tem qualquer garantia de sucesso. O risco é explicitamente assumido.
A propósito da situação de interlocução
Certamente não há apenas leituras criminosas ou recriadoras. Mas se o leitor criminoso é aquele que lê um livro contra outro leitor, lê a leitura que toma por inimiga para contrapor outra leitura, tornando os livros objetos transacionais, superfícies por onde deslizam interpretações que os reescrevem, então gostaria de dizer que espero uma escuta criminosa para minha fala, e agora para minha escrita, porque elas não serão (e poderia ser diferente?) mais do que a exposição de leituras.
O leitor dedicado, aquele que não pode deixar de ler, e o leitor insone, aquele que está sempre desperto, são representações extremas do que significa ler um texto, personificações narrativas da complexa presença do leitor na literatura. Eu os chamaria de leitores puros; para eles a leitura não é somente uma prática, mas uma forma de vida (Piglia, 2005:21)
Penso que somos todos leitores dedicados, quase insones, e como nos dedicamos todos ao estudo das formas de trabalho com a linguagem, com a escrita, com a leitura, com a cultura escrita numa sociedade excludente, eu é que caí de paraquedas no meio de vocês, em meio a estudos e diálogos que marcam o grupo e marcam as histórias de cada leitor. Assim, estejam todos à vontade para construírem suas contraposições, única forma de escuta e leitura que não é perda de tempo.
Uma concepção de linguagem
Eu tinha proposto que gostaria de trabalhar com uma perspectiva, um uma concepção de linguagem muito específica, que pode ser resumida na expressão linguagem como atividade constitutiva, ou seja, pensar os processos dessa atividade como uma atividade constitutiva. A linguagem é uma atividade que constitui a própria linguagem e constitui os sujeitos discursivos não como posições prévias que o sujeito simplesmente assumiria ou a elas se submeteria, como parece querer uma certa sociologia, mas sujeitos discursivos porque sua própria consciência é sígnica, discursivamente construída.
É certo que há um conjunto de papéis ou conjunto de posições sociais que cada sujeito assume a cada discurso e, porque assume esse lugar, o seu discurso terá tais e tais características. Mas esta perspectiva, ainda que frutífera para a construção de compreensões do que se diz, é superficial no sentido de a ideia de constituição implica que nós nos tornamos o que somos ou nos constituímos como sujeitos pelo processo de participação nos processos discursivos; nos processo interlocutivos.
É neste espaço, e somente neste espaço, que construímos o conjunto de categorias com que enxergamos e compreendemos os outros, compreendemos o mundo e a nós mesmos. O sujeito discursivo não é aquele que assume um papel, ou a ele se submete, e sai ileso da relação. Ao contrário, ele se constitui nesta relação e porque participa de diferentes relações e em diferentes momentos, em ordens nunca idênticas às de outros, traz para a relação – e para o papel que nela desempenha – algo que desestabiliza. O mundo social não tem a estabilidade que os modelos estruturais constroem como sua explicação. Dos processos saem mudados tanto os sujeitos quanto os lugares sociais por eles ocupados.
Estas observações primeira são tomadas de posição. Por isso falo em concepção e não em teoria, porque uma concepção é aberta e a extrema complexidade da linguagem talvez nos obrigue a operarmos muito mais com concepções do que com teorias.
Meu ponto de partida ou âncora é Bakhtin. Bakhtin, Vygotsky e a psicologia sócio histórica, com os quais faço dialogar Carlos Franchi (1977). Como toda tomada de posição, estas primeiras observações funcionam axiomaticamente. Todo posto de observação se constrói desta forma, ainda que muitas vezes os axiomas não sejam confessados. Pôr em questão o que se toma como axioma, põe em questão toda arquitetura da reflexão posterior.
Então, eu vou me dar – como qualquer teoria se dá – como existentes os processos interacionais: a interação entre nós humanos. Para esta interação jamais comparecemos de mãos abanando, de mãos vazias, como nossos alunos, aliás, não aparecem na escola sem nunca terem conhecido escrita, sem nunca terem falado e debatido assuntos, sem uma história de vida e de saberes. De que vamos carregados? De palavras, e as palavras funcionam como mediação necessária deste encontro entre o eu e o tu. E este encontro, este processo de interação, é um lócus de produção extremamente complexo: ele produz não só a própria interação pelo trabalho desenvolvido, mas produz também sua mediação necessária (a língua) e os sujeitos que nele trabalham.
Isto significa que não há um alguém, anterior a toda e qualquer interação com os outros; que não há um lugar social fixo, definido, imutável que dita o que nele pode ser produzido; e não há uma língua pronta e acabada desde sempre que somente é usada neste processo e sai dele incólume. Quando aceitamos os processos como pontos de partida e consideramos que eles são constitutivos dos ‘entes’ que neles se fazem, desfazem e refazem, então não temos um a priori dado como definitivo e acabado, mas somente temos processos de constituição. A Física Clássica, por exemplo, se dava como seu a priori que o mundo real existia. Tratava-se de conhece-lo(2). Ao contrário de nos darmos algo preexistente, na perspectiva sociointeracionista nós damos como existentes os processos interativos entre sujeitos, organizados numa sociedade.
Toda interação é uma relação entre o eu e o tu. Essas relações são mediadas, a linguagem verbal sendo uma das grandes responsáveis por esta mediação. Vamos restringir nosso campo à interação verbal(3). Obviamente esta é uma das formas de interação social, já que nenhuma delas se dá fora do contexto mais amplo. Nesses encontros, os sujeitos quando falam produzem discursos. Por isso, estou falando de um sujeito discursivo. Parece haver uma espécie de condenação ao sentido: dois homines sapientes postos um na frente do outro acabam produzindo linguagem.
O discurso sempre envolve colocar em circulação sentidos, compreensões que fazemos do mundo. A construção do homo sapiens é uma construção que se dá precisamente nos processos de construção discursiva. Consideramos como trabalho o conjunto de discursos que produzimos nestas relações. Um trabalho social, histórico, compartilhado e interativo. E constitutivo(4).
O conjunto desses discursos se constitui como trabalho linguístico. Usara língua não é como usar um objeto qualquer, uma camisa, por exemplo. Não existe uma língua que estaria ali, na outra sala, à disposição para meu uso. O que fazemos quando falamos é mais do que usar uma língua segundo suas regras. É um trabalho. E como todo trabalho demanda energia e, demandando energia, tem produtos. Todo trabalho tem um produto. Falar produz língua e não a desgasta como se desgasta uma camisa usada.
Na verdade, quando falamos em uso da língua, estamos nos associando a uma concepção de que a língua está pronta e que dela eu me aproprio, uso para dizer o que penso, para me comunicar. A língua não está disponível, pronta e acabada, como se o trabalho linguístico do passado a houvesse completado (e matado, portanto). A língua existe na medida em que é falada e por isso está sempre sendo construída.
Representar o mundo através da linguagem é um trabalho. Toda vez que falamos, esta nossa fala é produtora de sentidos que são postos em circulação pelo discurso e, no conjunto do trabalho coletivo, produtora da própria língua. Quer dizer, este trabalho com a linguagem tem como produto uma língua.
A língua é o produto social do nosso trabalho. Como a sociedade é dividida, o produto revela estas faces desta sociedade: cada comunidade a constrói diferentemente. E constituem o conjunto das línguas e, no interior das línguas, o conjunto das variedades linguísticas. Portanto, é da natureza do processo constitutivo da linguagem as línguas serem diferentes. Existirem variedades é da natureza da linguagem. A linguagem jamais é “mono”. O mito do “mono”, da unidade, é estabelecido durante os processos escolares, reproduzindo a ideologia social da unidade nacional, e então nós temos que falar uma certa língua para ter uma certa unidade nacional ou uma certa variedade, ou seja, como se ela representasse a unidade nacional.
Agora, se esse produto do trabalho é social e histórico, então a língua nunca está pronta, fechada, acabada. Nós a estamos produzindo também hoje. Não há algo pronto que uso para produzir discursos. Produzir discursos hoje é também produzir a língua de hoje.
Somente de uma língua morta, não mais falada, pode-se dizer que está pronta e deve ser seguida à risca. O latim de hoje é o português, o francês, é o espanhol, é o romeno. Então, o latim não morreu, não existe língua morta que não deixe de estar presente em sua herança. Existe língua que vai se transformando. Vai se transformando pelo trabalho social, e vai construindo outra língua que se torna tão distante que nós chamamos de línguas diferentes.[5] Em certo sentido, posso dizer o seguinte: o grego e o latim, o grego clássico e o latim clássico não desapareceram na história, simplesmente o grego clássico de hoje e latim clássico de hoje são as línguas greco-romanas. Talvez somente haja língua morta quando o genocídio acaba com seus falantes. Pensar a língua como processo de transformação é mais ou menos como dizer que a humanidade não morre enquanto houver homens, porque nós somos descendentes de todos os outros que morreram, e um pouco deles está em nós o tempo todo. Temos todos os nossos antepassados em um mundo contemporâneo. Em outras palavras, meu pai que é morto é um pai que está vivo em mim. É interessante, porque a gente sempre vai dizer meu pai, minha mãe, mesmo depois de mortos. Isso é um exemplo para brincar um pouquinho. Nós podemos ser tudo ex, menos ex-pai. Também nunca posso ser ex-filho. Eu posso ser ex-marido, ex-amante, ex-aluno, ex-orientando, ex-orientador, ex qualquer coisa, mas não posso dizer que sou ex-pai da Tânia, ex-pai da Joana, como elas jamais poderão dizer: – Eu sou ex-filha do Wanderley… Pensar assim o funcionamento da linguagem e pensar assim as línguas é reintroduzi-la no mundo da vida. A vida é esse movimento para sempre e ininterrupto, que se lança sempre pra frente.
Que isso tem a ver com a sala de aula?
Quem aqui dá aula de português para as quatro primeiras séries sabe. Quem é professor aqui e já leu em algum texto de aluno frase do tipo O menino, ele foi à escola ou O menino, foi à escola. Todos sabemos como tais frases irritam os gramáticos e os puristas…
Em geral, nós, professores, olhamos para esta escrita e corrigimos, fazemos um risco, porque há um outro modo de escrita: O menino foi à escola. E este é o modo consagrado como se fosse o correto.
É a emergência desta vírgula, que os puristas da língua portuguesa tanto detestam e ainda consideram como uma espécie de erro, que interessa compreender. Ela é muito frequente nos textos jornalísticos. Olhar para o uso dessa vírgula e compreender o uso dessa vírgula é compreender um processo histórico que está se construindo no português. O sistema, ou seja, a nossa língua, se construiu com base no latim, também alterando a ordem sintática preferida por esta língua. O português, isto é, os falantes de português “optaram” pela ordem sujeito, verbo e objeto.
O que está acontecendo no português contemporâneo?
O português contemporâneo está alterando esse modo de perceber e olhar o mundo. Hoje nós falamos chamando a atenção para algo, para uma realidade que esteja ao redor, por exemplo o menino, a carne… Esta primeira palavra funciona quase como um modo de “apontar” para o assunto. É sobre este assunto (objeto, pessoa, etc) que digo algo a seguir. A estrutura do português está passando de sujeito/verbo para a estrutura tópico/comentário. Primeiro vem o tópico do meu assunto, depois o que digo sobre ele. É uma mudança da estrutura sintática para uma estrutura de base mais pragmática.
Esta vírgula que aparece é a marcação do tópico no português, tanto que há uma certa pausa entre o sujeito e o verbo. Isso é marcado na escrita pela vírgula, que pela regra da gramática tradicional é inadequada, porque não se separa o sujeito do verbo com a vírgula
Quando as crianças estão separando, elas estão demonstrando o processo de estruturação da língua que está se alterando. O japonês, por exemplo, todo ele tem uma estrutura sintática do tipo tópico/comentário. E como vocês podem perceber, formulei esta última afirmação na estrutura tópico/comentário [para o menos avisado, note que este enunciado tem como tópico “o japonês”, e como sujeito “todo ele”].
Esta é uma mudança nesses processos do trabalho contemporâneo sobre a língua e vem alterando a estrutura do enunciado. É mais fácil para perceber este trabalho na produtividade lexical: vivemos criando palavras. Qualquer um da área da educação quando lê um texto de Paulo Freire percebe claramente o seu gosto pelos neologismos. Ele n~]ao vai dizer a essência, mas vai falar da essencialidade. Com base em essencial usa essencialidade, que traduz ainda aqui a ideia de qualidade e não de substância. Há, pois, diferença de sentido entre essência e essencialidade. E no pensamento de Paulo Freire é fundamental estabelecer estas distinções, já que para ele os processos são mais importantes do que os entes: estes são produzidos por aqueles. Então, a língua está sempre sendo criada. Há mitos sobre o funcionamento do léxico da língua. É uma grande besteira, por exemplo, do Deputado Aldo Rebelo propor a proibição de coisas como deletar, acessar ou a introdução de expressões que vêm de línguas estrangeiras. Toda língua é penetrada e penetra outras línguas. Nós podemos chegar a uma lanchonete e pedir – “Eu quero um x egg sem ovo”.
Uma pessoa da plateia questiona: Então, essa forma de entender a língua está mais no aspecto cultural do que no aspecto estrutural?
Primeiro, não dá nunca para separar a língua da cultura e pensá-la como mera estrutura, porque nenhuma estrutura linguística é infensa à cultura. Se ela não é infensa à cultura, e se a cultura é algo que está sempre em movimento, a estrutura da língua não pode ser uma estrutura fixa, mas o lugar onde essa cultura se marca e por isso ela não é uma estrutura acabada. No máximo, uma língua é uma estruturação em aberto. Para mim, uma língua é uma sistematização em aberto. Não é dizer que não tem estrutura nenhuma. Você não pode fazer o que quiser, porque aí é negar a história do passado, mas estamos sempre sistematizando essa língua e quanto você constrói um novo item lexical ou coisa semelhante, você desloca sentidos. Consideremos o seguinte exemplo:
Hoje você dificilmente ouve uma criança dizer: “Professora, o Pedrinho ‘malufou’ a minha caneta”.
O menino dizer “o fulano malufou”, no sentido de tomar algo que não era seu, desapareceu de nosso vocabulário. O verbo ‘malufar’ hiperbolicamente remetia a uma posição de que era acusado o político Paulo Maluf. É uma expressão que desaparecerá da língua. Ela surgiu das tomadas de posições políticas. Quando se dizia que “fulano malufou”, significava que passou a apoiar o Maluf, como candidato; este o primeiro sentido de “malufar”. Como esse candidato tem uma certa fama, o verbo ‘malufar’, de apoio político, passou a significar uma ação que supostamente seria de Maluf (quem dera que fosse somente dele”).
Existem outros que seguiram os mesmos processos, como por exemplo “tancredar”. Claro que a geração de vocês não vai lembra disso. Mas, quando nós lutamos, a nossa geração do Movimento pelas Diretas-Já chega à eleição de Trancredo neves ouvindo que “o Deputado tal tancredou, embora seja da Arena”. Isso queria dizer que não vai obedecer ao chefe de plantão, e vai votar na oposição. Como se sabe, Tancredo fica doente, não chega a tomar posse e morre. O verbo “tancredar”, com o sentido de dar apoio a Tancredo desaparece da nossa linguagem, mas persiste como gíria entre os médicos, na época. Na medicina, quando certos médicos, certos grupos de médicos estão na cirurgia e alguém diz que o cara “tancredou”, implícita que a coisa e não está indo bem, e que o paciente está com septicemia e possivelmente acabará morrendo. Os sentidos são construídos ao longo da história. Nesse sentido, a cultura penetra na língua, algumas expressões ficam e outras não. As que ficam vão perdendo também a sua origem de construção, como neste último exemplo ou como desaparece em outras expressões, como “esclarecer” na qual não enxergamos mais os sentidos racistas que lhe subjazem.
Os processos de construção de linguagem vão construindo novos sentidos e vão perdendo os sentidos anteriores, de tal ordem que a gente poderia pensar, por exemplo, que uma expressão tem o sentido como tem essa lâmpada. Por exemplo, num contexto de quatro lâmpadas, qual a lâmpada que ilumina o Marcos (a pessoa apontada na exposição? Todos nós enxergamos um foco de luz. Uma expressão na língua é como se tivéssemos um foco que abre, se espraia. Eu gosto dessa palavra porque um determinado jornalista disse para Olívio Dutra (então Ministro das Cidades) trocar “espraiar” por “espalhar”, imaginando que espraiar fosse uma variante de espalhar, mostrando sua burrice, porque espraiar é totalmente diferente de espalhar…
A luminosidade desta lâmpada tem um ponto focal, se espraia e ela ilumina esta sala porque as paredes a limitam. Por exemplo, se você colocar uma lâmpada de 100W na sala de jantar, ela ilumina por completo a sala, mas se você colocar essa lâmpada em um pátio aberto não ter o mesmo efeito, teremos bons lugares escurinhos para se namorar. Como a luz que se espraia, assim são as palavras. Seus limites, suas paredes são o discurso; produzir discursos é construir, com os recursos expressivos de uma língua, as paredes que permitem enxergar, isto é, compreender. Portanto, produzimos os sentidos a cada discurso que fazemos. É desse sentido que se trata. Ao contrário do que disse o estruturalismo e depois foi ensinado na escola, a denotação está no discurso, no contexto, e não na língua. Cada expressão da língua se esparrama em sentidos, é plena de conotações e o trabalho discursivo é um trabalho que, operando com esses recursos, procura fechar o sentido do discurso. Portanto, a denotação é do discurso. O trabalho de produção de um discurso é o trabalho de produção de denotações. A possibilidade de conotações está inscrita na língua e se realiza nos processos metafóricos, nos processos metonímicos. Eles funcionam e são os lugares privilegiados da construção de novos sentidos.
Eu estou querendo colocar que ao contrário do que a gente poderia imaginar, aquilo que é produto do trabalho social e histórico de construção de uma língua não é um produto fixo, fechado cuja estrutura eu posso apreender, mas é um conjunto aberto e inacabado de recursos expressivos, desde a entonação até a estrutura de um longo texto de um obra, passando pelos gêneros discursivos, passando pelos textos, passando pelas estruturas sintáticas, morfológicas e pelas estruturas fonológicas. Essas estruturas não são fechadas, elas são estruturas abertas, por isso estou chamando de sistematização em aberto.
Por isso, na sala de aula, há que haver muito cuidado ao corrigir. Poderemos estar trabalhando para manter o que já não existe, o que já é passado na língua, como no exemplo do uso da vírgula apontado anteriormente. Também será necessário ter presente que o processo de aprendizagem se dá pela participação nos processos interativos, ou seja, somente com práticas linguísticas – inclusive práticas de reflexão sobre os recursos linguísticos – que podemos aprender a língua que nos faz sermos o que somos.
As interações verbais não se dão como se nós fôssemos anjos pairando num universo, e nos encontramos e entramos em interação. Nós vivemos efetivamente no interior de uma determinada estrutura social, organização social. Toda e qualquer organização social produz as suas instituições sociais. Nessas instituições realizam-se diferentes atividades, e por isso se organizam determinadas formas de discurso, que são os gêneros discursivos. Por isso, esses discursos são extremamente marcados pela instituição social. Sempre operamos com uma língua pra produzir um discurso, estando dentro de uma determinada instituição. Esse discurso e as nossas possibilidades de operações são arregimentados, contêm regime que a própria instituição oferece. Mas não se tornam camisa de força, pois, se assim fosse, o trabalho seria sempre repetição e não criação. Por exemplo: numa escola, você vai requerer matrícula. Na justiça, você entra com uma petição. O gesto (simbolismo) é o mesmo. Já em casa, se você for requerer a janta para a mulher, provavelmente você vai ao computador, escreve, imprime e entrega a solicitação da janta. [E provavelmente e merecidamente deveria ser expulso de casa!]. Em casa não requeremos, nós pedimos, nós fazemos.
Uma pessoa da plateia fala: – Quando no Sindicato dos Metalúrgicos o pessoal se aproxima para falar notícias de jornal que estavam apurando que a “gata” tinha dado um problema e precisava de um Bombril, e aquilo era indispensável, fui conversar com a pessoa do Sindicato e ela me explicou que Bombril era o atestado médico (INSS) e a gata era a empresa que o contratava, era uma subempreiteira. Se você não tratasse com o discurso utilizado, você não era entendido.
Isso mesmo. O discurso é extremamente situado. Você tem o uso de expressões que são extremamente marcadas e que se constroem no interior de processos institucionalizados. Obviamente, não encontraremos essas palavras específicas no dicionário. Por exemplo, essas palavras que têm um sentido no dicionário, não é proibido que sejam usadas em outro sentido, como no exemplo que você fornece. Palavras são recursos expressivos na língua, mas são as operações com esses recursos que produzem o sentido efetivo do discurso.
Toda e qualquer sociedade, toda formação social produz na sua organização um conjunto de redes ou um conjunto de controles que incidem sobre as interações possíveis, e por isso incidem sobre o nosso trabalho linguístico. Assim, incidem sobre o produto que é a língua. Esta rede de controles não é, no entanto, imóvel e tão rígida que não nos restaria vida se não a repetição da vida dos outros. Não repetir, não se fixar, deixar-se criar: esta a labuta com a palavra falada, lida ou escrita. Talvez ensinar a língua também signifique ensinar que a vida não está pronta, não está acabada e que sempre há um horizonte para aquilo que virá.
Notas
- Este texto resulta de uma fala num encontro na UNIRIO. Não lembro a ocasião, mas certamente foi a convite da colega Carmen Sanches. Posteriormente foi tornado texto escrito para publicação in. Lígia Martha Coelho (org) Língua materna nas séries iniciais do ensino fundamental. De concepções e de suas práticas. Petrópolis : Vozes, 2009, p. 213-228.
- Sabemos que a Física Quântica já não parte deste pressuposto.
- Ao considerar a interação, como uma relação entre um eu e um tu, mediada pela linguagem, estamos excluindo interações diretas entre sujeitos e objetos. Há teorias da ação que admitem estas interações, não considerando inclusive o aspecto fundamental da mediação linguística ou da mediação do outro.
- Uma analogia simples: na análise das funções sintáticas aprendemos que, na oração “Os operários construíram a ponte”, a ponte é objeto direto. No entanto, não é um objeto que sofre a ação, mas é produto da ação. Esta ação é constitutiva. E no sentido que estamos usando aqui, uma ação constitutiva não só da ponte, mas dos próprios operários que se fazem ‘construtores de ponte’ como tais à medida que constroem.
- [nota acrescentada] Obviamente uma língua pode ‘morrer’ porque todos os seus falantes morreram [ou foram assassinados como no caso de muitos povos indígenas que não chegaram a se integrar à nova sociedade colonizada que se formava sobre o seu território]. Ao morrerem todos, morre a língua: não há herança possível com a morte de toda uma comunidade de falantes de uma língua.
Referência bibliográfica
Piglia, R. (2005). El ultimo lector. Barcelona: Anagrama.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Gostei muito. Vou trabalhar com o texto em aula. Beijos!
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