Josefina, a mulher que pintava os cabelos

A idade ia entre 5 e 6 anos. Numa tarde, a irmã mais velha interrompe a brincadeira (de que estaríamos brincando e com que continuamos a brincar?) para nos dar uma informação preciosa: nossa mãe iria receber a visita de uma mulher que pintava os cabelos… Ela vinha de outra cidade: São Luiz Gonzaga.

Havia algo na história de vida da Josefina que jamais compreendi direito: uma desilusão amorosa com alguém próximo da família. Ela se perdeu… diziam. Ficou sozinha, mas sempre um pouco em torno da família lá em São Luiz e vinha pela primeira vez visitar minha mãe, trazida por minha avó para Santo Ângelo.

Pois ficamos no aguardo. Quem nos avisou que havia chegado foi a irmã mais velha, que também liderou a todos nós: não podíamos invadir a sala de visitas – lugar que muito raramente frequentávamos, com seus sofás de veludo vermelho. Havia na frente da casa o que então chamávamos de “área”, uma espécie de pequena varanda, com a porta de entrada oficial e uma janela.

Combinado: minha irmã abriria a janela. Nós faríamos uma espécie de procissão, cada um espiando por sua vez, pela janela a “mulher de cabelos pintados”. Hoje diria que havia um frenesi na criançada toda: a brincadeira na rua parou. Fizemos uma fila.

Lá se forma todos a espiar pela janela… e ninguém contava nada a ninguém! Provavelmente porque não queriam parecer ‘bobos’ por não terem visto os cabelos pintados!

Quando chegou minha vez, fui à janela e enxerguei uma mulher conversando com minha mãe. O cabelo pintado que eu imaginava fosse de cores, muitas cores, bem pintado, não passava de um cabelo meio ruivo e um pouco alvoroçado… Uma verdadeira decepção. Tanta espera para nada… E não tive dúvidas: da janela mesmo gritei que o cabelo não era pintado, era da mesma cor do cabelo ruivo da vizinha, outra companheira da brincadeira que também estava na fila ansiosa para ver “a mulher que pintava o cabelo”!

Lembrar isto tudo agora… por quê?

Acontece que em cerimônia cheia de efes e erres, uma secretária de educação, de um município governado por prefeito “socialista” (ele é do PSB), assinou na frente de todas as diretoras das escolas municipais, convocadas para a efeméride, um contrato de assessoria pedagógica com o Pastor Ock Soo Park, um sul-coreano, fundador de uma organização missionária e independente da igreja batista independente, a Missão das Boas Novas!

Pois o homem prega, porque o homem teve seus pecados perdoados e ganhou como presente a salvação eterna! Já se sabe salvo, já se sabe habitante futuro dos céus. Pois com estes qualificativos todos, passou a assessorar a rede municipal de ensino de Campinas, dando formação aos professores da rede!

E prega o pastor: a educação vai mal porque as mulheres e as professoras, em vez de se preocuparem com seus filhos e com seus alunos, PINTAM O CABELO! E a gente que pensava, imaginava – vã filosofia – que os escores altos dos coreanos nas avaliações internacionais fosse resultado do esforço educacional do país, do investimento, das condições sociais. Não, tudo vã imaginação. Para que Campinas chegue aos mesmos resultados, basta algo tão simples: as mulheres e as professoras não pintarem mais o cabelo!!!

Vejam só: foi a Josefina que começou isso tudo e prejudicou tanto a educação brasileira… agora, estaremos salvos eternamente pelo Pastor e pela brilhante ideia da secretária de educação em contratá-lo para orientar para o bom caminho as professoras e os professores (mas se estes pintavam o cabelo, então a culpa somente pode ser do PT, não da Josefina).

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.