Imprecisão linguística

Talvez devesse usar outra palavra, outro termo, escolher algo mais ameno, mais polido, menos agressivo e…, por assim dizer: desprovido de expressões encontradas comumente nos meios coloquiais ou…, de pobres. Sutilezas. Percebam que popular é pouco melhor do que pobre. Afinal, pobre é aquilo que ninguém quer ser, sendo.

Esse é o lapidar da luta de classes. Casa popular, bairro popular, escola popular não é o mesmo que dizer carro de pobre, bairro de pobres, escola de pobres.

Dada à riqueza de nosso vocabulário é possível dizer quase a mesma coisa, dizendo muito o contrário, ou melhor, usando palavras selecionadas. Como frutas selecionadas do supermercado: escolhidas, melhores, bonitas e que não são – até pelo preço abusivo, para todos. Imagine!

Então, para dizer sobre racismo, usamos brincadeirinha, para homofobia reservamos intolerância, para machismo, que tal conservador? Essas expressões citadas são exemplos clássicos, utilizados para traduzir ações de fala de um segmento social para outro. Até que a gente possa perceber que a diferenciação escapa a linguagem, e encontra-se em tudo, nas palavras de Romero Jucá: um grande acordo nacional.

Assim, o contorcionismo linguístico é uma arte, das mais tristes, violentas e cínicas. E se esconde tão bem acomodado pelas frestas da sociedade, que imperceptivelmente vamos tornando-o parte de nossa cultura, sem explorar as mazelas de tais práticas.

Fato é que não estudamos isso em nenhuma universidade – que dirá na educação básica, mas se chegamos à universidade com certeza já internalizamos e a conhecemos bem, afinal as redações exploram bem o domínio da linguagem impoluta.

Essa linguagem, que é a própria ferramenta da enganação, serve para amenizar as culpas, às vezes até para destruí-las. Um jovem empresário rico que arrasta com sua Mercedes uma senhora pobre que vende balões, estava brincando. Um homem que aparece em vídeo espancando a esposa, depois alega que ela teria se jogado pela janela, estava alterado; Um helicóptero que pousa com meia tonelada de cocaína não tem dono,  o piloto da FAB tinha no avião 39 quilos de cocaína.  Chamamos de coincidência que os assassinos de Marielle Franco fossem vizinhos de figuras poderosas em condomínios de luxo que abrigam 117 fuzis, assim como o vendedor de carros Queiroz, sambou na cara da sociedade internado no Hospital Albert Einstein,  acrescenta-se que esse mesmo “possível” infrator(bandido?corrupto?meliante? vagabundo? laranja?) nunca tenha sido sequer indiciado, ou levado coercitivamente para depor. E tráfico vira transporte de drogas, cortes viram contenção de verbas. Corrupção vira perdão de dívidas fiscais. O novo governo, usa da lapidação de classe, e faz várias flexões.

Um país pouco letrado. Muitas histórias contadas usando palavras selecionadas.

Assassinatos que ganham versões de troca de tiros, mulheres que usavam roupas curtas justificam estupros, crianças erotizadas que acabam por provocar pedófilos, gays que se beijam em praça pública destroem as famílias. Narrativas flexibilizadas por quem sabe fazer o bem.

A culpa desaparece de uns para surgir em outros. Sem provas, sem propriedades, sem verdade alguma. E, aceitamos, sem crítica alguma, palavras desconhecidas no lugar de outras que poderiam ser entendidas facilmente por quem tem que ser enganado. Discutimos conceitos e usamos argumentos elaborados: pós-verdade, fake news, meme, hashtag.

Nossa evolução culminou em um juiz que não é juiz. A justiça de tanto flexibilizar está fora do seu lugar. Não é só com uns. Não se enganem se não tem para uns não tem pra ninguém.

Não há nesse país justiça.  Não haverá. Lula morrerá na cadeia porque é o símbolo de que pobres têm seu lugar. Muito pior que agora esteja claro, transparente afinal. Não é mais questão de ser ou não inocente, pobres não têm direito a justiça.

Não há justiça para pobres.

Não já justiça para pobres.

Não há justiça para pobres.

O galo cantou três vezes até que a polícia viesse e Pedro negasse Jesus.

Não há justiça para pobres. Nem Deus.

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

follow me