Esta seria a história de um homem comum, se não tivesse sido narrada por Philip Roth! Se a inexistência da estrutura de capítulos poderia fazer supor um livro escrito de um fôlego só, para uma leitura ligeira, é ledo engano! Porque o tema é aquele do encontro do homem com a sua própria morte, não a morte em seu sentido abstrato, distante, que virá, mas que a esquecemos no cotidiano. Aqui, a morte é constante, contínua.
A cena primeira é do enterro do herói. Num cemitério judaico praticamente abandonado, mas onde estavam enterrados seus pais. À cerimônia acorrem o irmão Howie; os dois filhos do primeiro casamento, já homens feitos, Randy e Lonny; a filha do segundo casamento, Nancy, além de alguns antigos colegas da Agência de Publicidade em que trabalhou. À beira do túmulo, Nancy explica a escolha por aquele cemitério – para que o pai descanse junto a seus pais; Howie recorda cenas da infância, do trabalho que o irmão mais novo fazia para o pai, sempre cuidadoso e diligente, na joalheria que sustentava a família em Elizabeth; depois Lonny tentou falar com um torrão de terra não mão, mas não conseguiu e seu irmão Randy o segurou dizendo apenas “Descanse em paz, pai”.
É depois desta cena no cemitério que começam as rememorações da vida, com um narrador em terceira pessoa: conta-se a vida deste “homem comum”, não nominado, que na infância foi operado de uma hérnia tendo mãe e pai a seu lado. Recuperar esta cirurgia fará sentido na sequência desta história de uma vida que não foi mas poderia ter sido: tudo girará em torno da doença cardíaca que o acomete ainda quando em plena atividade como Diretor de Artes da agência.
A cronologia da história pode ser recuperada depois da leitura, porque o presente é entremeado de memórias do passado, e estas não aparecem segundo seus acontecimentos na sequência temporal, mas segundo o que no presente faz emergir algo do passado. Este é um dos encantos deste livro!
A história seria simples e comum: menino que começa trabalhando para ajudar o pai; que entra para a Universidade e cursa Belas Artes pensando em um dia ser pintor: que conhece e se apaixona por Cecília, sua primeira mulher, com quem terá dos dois filhos homens Randy e Lonny. Os filhos fazem-no abandonar qualquer veleidade de sobreviver como pintor: emprega-se numa agência de publicidade e se torna um “artista comercial” de sucesso. Na agência conhece modelos, conhece mulheres e leva uma vida de um homem mulherengo. A separação ruidosa acontece quando ele se apaixona por Phoebe, que será sua segunda mulher e com quem viverá mais de 10 anos. Deste casamento nascerá Nancy, a filha generosa que manterá relações com o pai ao longo da vida. No entanto, aos cinquenta anos novamente uma paixão avassaladora com uma modelo dinamarquesa de 24 anos, Merete, que se tornará sua terceira mulher num casamento que terá pouca duração desde que os problemas sérios da saúde do “homem comum” surgiram. Esta seria a sequência de uma história sentimental sobrecarregada de traições, de mentiras, cuja narração vem carregada de arrependimentos e de angústia.
A segunda cronologia é aquela das doenças: primeiro, ainda na adolescência, a cirurgia da hérnia; depois no auge da carreira, já casado com Phoebe, começa a se sentir fraco, mal e ele mesmo vai para um hospital: diagnóstico de uma apendicite e peritonite. A recuperação foi difícil e demorada. Teve então toda a presença e constância de Phoebe. Depois começam a aparecer os problemas cardíacos. A primeira intervenção, demorada, derruba por completo sua então mulher, Merete, que não consegue acompanha-lo, o médico exigindo que fossem contratadas enfermeiras para cuidá-lo. Então conhece a enfermeira Maureen, com quem, obviamente, terá um longo caso. Depois da separação de Marete e com a aposentadoria, resolve ir viver na praia muito próxima àquela das férias de sua infância. Lá pretendia se dedicar à pintura. E o faz por um tempo. Mas os problemas cardíacos vão se avolumando e ele a cada ano tem uma internação e uma intervenção.
É deste período de vida solitária que vem toda a narrativa permeada pelas reflexões que o “homem comum” vai fazendo sobre sua própria vida, cuja história, se um dia ele a escrevesse, teria por título Vida e morte de um corpo do sexo masculino. Nenhuma crença num futuro depois da morte: ele abandonara o judaísmo logo após seu bar mitzvah. “A única coisa que havia era o corpo, nascido para viver e morrer conforme o que fora estabelecido pelos corpos que viveram e morreram antes.”
Mesmo tendo três filhos, mesmo tendo tentado, em sua casa da praia, ensinar pintura a outros velhos aposentados, é a solidão o que o acompanha depois de ter desperdiçado seu tempo, perdido suas mulheres em troca de outras mulheres. Seus filhos homens, criados pela mãe, odiavam-no! Sua filha mulher era a única que ainda o frequentava e que lhe dava qualquer apoio. Vivia solitário, na praia:
Quanto tempo uma pessoa pode passar olhando para o mar, mesmo sendo o mar que ela ama desde criança? Quanto tempo ela pode ficar vendo a maré subir e descer sem se lembrar, como se lembraria qualquer um num devaneio à beira-mar , que a vida fora dada a ele, como a todos, de modo aleatório e fortuito, e apenas uma vez, sem nenhum motivo conhecido ou passível de ser conhecido?
[…]
… quanto tempo um homem pode ficar relembrando os melhores momentos da meninice? Por que não desfrutar os melhores momentos da velhice? Ou seria o melhor da velhice justamente isto – relembrar com saudade o melhor da meninice, aquele rebento tubular que era sue corpo, que acompanhava as ondas desde lá longe, onde elas começavam a se formar, vinha carregado por elas com os braços voltados para a frente, como se fossem a ponta de uma seta e o resto do corpo magricela vindo atrás fosse haste da seta…
Este desconsolo da velhice – “A velhice não é uma batalha, a velhice é um massacre” – acompanhado de tantas dores e doenças, desta falta de horizontes que carrega a inveja dos corpos sãos, que enxerga na potência dos outros sua própria impotência, que traz a mesquinhez. Estes são os ingredientes com que o leitor se deparará e que ensinarão a dificuldade de assumir: “Estou com setenta e um anos, e este é o homem que fiz de mim. Foi isso que fiz para chegar aonde cheguei, e estamos conversados!”
Um dos episódios mais insólitos e carregado de alusões é sua visita aos ossos de seus pais no velho cemitério judaico, e a conversa longa que mantém com o coveira que estava abrindo uma nova sepultura na terra. Ele vai perguntando pormenores, toda a técnica do cavar, do alisar o chão do fundo, as paredes laterais, para que tudo fique perfeito para a família e para o morto ali depositado, incluindo o recorte em quadrados da grama para ser posta sobre o monte de terra para que tudo pareça bonito e não revolvido.
O difícil, o quase impossível é assumir o “estamos conversados” quando, como é o caso deste nosso “homem comum”, o passado lhe traz tantos arrependimentos que somente aparecem quando a solidão se torna concreta, tão solitária que ele sozinho se interna no hospital para outra intervenção, desta vez na carótida esquerda, em que ele pede, ao contrário de quando da intervenção na direita, lhe dessem anestesia geral, de que não mais acordará.
Referência. Philip Roth. Homem comum. Tradução de Paulo Henriques Brito; São Paulo : Cia. das Letras, 2007.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Comentários