Tanto tempo sem. Agora chove. Chove muito. As ruas do bairro estão alagadas: rios compridos de baixa profundidade escoam as águas que descem das montanhas verdes que contornam esta pequena enseada chamada Barequeçaba.
A chuva traz água limpa que se mistura com as águas que descem carregando terra pouca, mas o suficiente para sujá-las de um marrom claro. Não é sujeira, é terra. Nilda chegou com atraso e filme: atravessando molhada as ruas, segurando um guarda-chuva e assim mesmo conseguiu filmar. Não venta, assim mesmo acho uma proeza segurar o guarda-chuva, andar neste rio longo e filmar… Para fazê-lo, há que ter a calma que não teria: minha pressa seria maior do que minha capacidade de olhar e filmar.
Abrigado na varanda da casa, eu lia. Lia o primeiro volume de “Os Vivos e os Mortos”, O povo do mar e dos ventos antigos, de Wilson Rio Apa. Vivia este tempo de chuva com Ana das Almas, com o menino, com os afogados, com a falação do mar que não escuto, mas que ambos, vivendo na Ilha do Espia, tudo escutam e compreendem.
Suspendo a leitura: preciso encher a cuia para continuar tomando meu chimarrão. Os olhos se dispensam do livro, livres. Na minha árvore da frente, um chapéu de praia, se abrigam pardais e canários da terra. Movem-se buscando a folha sob que se abrigar. Chove. Chove muito. Com a cuia na mão, vejo as gotas grossas da caem da árvore na água da piscina. Dois tipos de gotas d’água: as que vêm da árvore, a água da piscina responde abrindo espaço, incorpora-as com movimento e beleza; as gotas que vem do céu abrem pequenos furos para se alojarem: nada de espelho, somente movimento.
Ao calor de ontem, uma aragem leve: começo a espirrar: meu corpo enfizemado avisa que é preciso tapar o peito. Busco uma camisa regatas. Pronto, posso voltar ao meu ponto, os olhos podem voltar às páginas escritas por Rio Apa: volto para a Ana das Almas, volto para a ilha, volto para as divagações do menino que sonha com a menina de névoa, mas desenha no chão o corpo de Joana, aquela que Elesbão trouxe um dia e com a qual brincou até brigarem.
Pausa. Preciso de mais um mate! Outra folga nesta leitura aos solavancos. Encho a cuia e enquanto sorvo o mate, não leio. Olho e penso: nas personagens, nas gentes imaginárias que refletem gentes não imaginadas de que não são cópias. Mas aprendi com o poeta que é falso tudo o que não inventa, penso que mais concretas e compreensíveis são as imaginárias de vida curta no fim do volume, e portanto passíveis de completude, do que as não imaginadas, mutantes que são, jamais completadas.
Olho para o lado, abandono o que penso: enxergo a gaiola aberta. Desde ontem. É que ontem, quando limpava a gaiola do Epaminondas, um canário da terra, todo listado e de uma amarelo pálido, esforçou-se para entrar na gaiola! Fome, sede? Ou havia fugido de outra gaiola e, habituado, queria retornar? Que fiz eu? Arrumei uma outra gaiola, pus sementes, a comida dos canários belgas, arrumei água, e deixei com a porta aberta: se quiser comer, há de comer. Mas a porta nunca será fechada: visite-nos quando quiser. Ao mesmo, que não sou caçador, coloco lá fora um bom bocado de quirera de milho: para as rolinhas, para os pardais, para os canários da terra. E aquele canário listado não voltou mais… mas a gaiola ficou ali, esquecida e aberta. Quem sabe, não hoje, em outro momento a fome bata e ele volte e nos visite novamente, mas livre para ir e vir. Presos, somente aqueles que não sobrevivem na natureza porque exóticos aqui: meu Polidoro, meu Democritus, meu Epaminondas. Nilda acha “Democritus” um nome difícil… é que a democracia sempre esteve longe de quem trabalha e sustenta a democracia dos de cima.
Chove. Chove muito. Novamente os pardais e os canários se movem no chapéu de praia. E então tomo consciência: hoje não haverá beija-flores beijando as flores, nem tomarão água no bebedouro: quando muito chove, eles somem. Sem beija-flores, por ora vejo o mundo sendo lavado.
Chove. Chove muito. Quando parar, ponho água doce no bebedouro!
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Estou aqui batendo palmas!!! Preciso também, e urgentemente, aprender a deixar abertas as portas de minhas gaiolas. Forte abraço.
Vamos ter que esperar a hora de por água doce do bebedouro.
Lindo texto! Poesia