Estas três notáveis novelas que compõem um só volume, publicado orginalmente em 1959 (Lisboa, Editora Portugália) certamente não foram os primeiros escritos ficcionais do mestre Agostinho da Silva (* Porto, 1906, + Lisboa, 1994). Nos 92 anos de vida agitada, este filósofo, professor, poeta, ensaísta, filólogo e entomólogo foi, sobretudo, um militante da cultura e da política.
Formou-se em Letras, e um ano depois de concluído o curso, já defendeu sua tese de doutoramento, aos 23 anos, em estudos clássicos. Como não poderia deixar de ser, participou da Seara Nova onde certamente conviveu com Jaime Cortesão, que encontrará no Brasil e com o qual participará da organização da Exposição do 4º. Centenário da cidade de São Paulo.
Foi professor secundário em Aveiro, a partir de 1933, mas foi demitido porque se recusou a assinar documento exigido pela ditadura de Salazar (lei Cabral) declarando que não pertencia a nenhuma organização “secreta” (no fundo, qualquer organização de esquerda). Preso em 1943, vai para o exílio no ano seguinte, na América do Sul, radicando-se no Brasil (1947) onde trabalhou como entomólogo na Fundação Oswaldo Cruz, deu aulas em muitas universidades, foi um dos fundadores de duas grandes universidades brasileiras: UnB (Brasília) e UFSC (Florianópolis). Somente retornou a Portugal na chamada “primavera marcelista”, período ainda ditatorial, mas já com Salazar morto e enterrado…
Somente estes dados biográficos são suficientes para “perceber o tipo” como diriam alguns portugueses. Realmente deve ter sido muito grato o convívio com um pensador militante como foi Agostinho da Silva. Vivo insistindo com minha amiga Luíza Cortesão para que escreva suas memórias, que incluem muito convívio tanto com seu tio Jaime Cortesão, mas também com outros intelectuais, entre eles Agostinho da Silva, que, segundo me disse, teve grande influência em sua vida. Esperemos, e esperemos sentados, porque Luíza Cortesão não consegue parar em sua própria militância, seguindo os caminhos que lhe ensinaram o pai, o tio e… Agostinho da Silva.
Vamos às três novelas. Elas estão na ordem em que foram escritas, informa a nota prévia, assinada precisamente por “Mateus Maria Guadalupe”, um heterônimo de Agostinho da Silva. Já se vê que o estilo é memorialístico, mas sem datas, sem cronologias, sem remessas a um mundo que não o ficcional (ainda que jamais uma obra de ficção é “pura em si mesma” e deixa de ter seus laços com a vida, em seus tempos e seus espaços). Ainda que tenha lido obedientemente na ordem dada pelo autor, aqui vou desobedecê-lo porque ao final da terceira novela (quando aparece o nome de Mateus como a personagem narradora) descobre-se uma sequência cronológica que, compulsados os dados biográficos do autor, fazem ver que realmente são memórias ficcionalizadas, memórias de relações com as três mulheres que dão título ao volume.
Comecemos por Teresinha! Trata-se de uma menina bela, empregada em uma indústria têxtil, com quem o amigo Carlinhos namora. Os pátios das casas de ambos se juntam no muro que os separa. Carlinhos vai aos fundos, namora através do muro e aos domingos e feriados passeia com Teresinha pela cidade do Porto.
Os encantos de Carlinhos ficavam para os lados do quintal que era estreito e comprido, com um só renque de nespereiras e, junto ao muro, canteiros de flores, quase tudo malmequeres e amores-perfeitos. Flores contraditórias, mas para Carlinhos muito bem. Ele era assim mesmo: contraditório; ou, como a terra, alegremente e vigorosamente alimentando suas flores, fossem quais fossem; ou, como a vida, talvez indiferente a terra e a flores.
Carlinhos era então estudante de medicina e colega do narrador, Mateus, já formando em engenharia, mas também ele estudante de Medicina. Mateus insiste com Carlinhos: que quer ele com Teresinha? Casar? E recebe a resposta: namorar, somente namorar… o que a mãe do “namorador” chamará de “passar o tempo”. Quando se chega a este estágio da narração, compreende-se a descrição dos canteiros de flores da passagem citada acima. Carlinhos gosta de Teresinha, mas também não gosta de casar… de encarar seriamente o amor. Vive malmequeres e amores-perfeitos.
Acontece que Carlinhos, suficientemente endinheirado, quer estudar fora. E vai embora de Porto para completar seus estudos. Mateus perde de vista Teresinha, mas numa visita aos pais do antigo colega fica sabendo que a família tinha mudado de endereço, estava agora “lá para as Fontainhas”.
Começa então Mateus, sorrateiramente, a ver a saída de Teresinha da fábrica e para onde vai. E não deixa passar a ocasião, para se aproximar, e agora, será ele quem passeará e namorará Teresinha. No enredo, o pai da moça, um varredor da Câmara que trabalha à noite, fica doente e o estudante de medicina lhe arruma remédios. E numa manhã qualquer, lendo o jornal, Mateus se depara com a notícia da morte trágica do velho pai: fora morto a tiros: estava descansando no vão da porta de uma casa, dormiu, caiu e fez barulho. O dono, crente que se tratava de ladrão, abre a porta e o mata. Corre Mateus para acompanhar Teresinha e sua tragédia.
Mas também ele “apenas passa o tempo” porque depois de muitos passeios diz à Teresinha que irá para Paris para continuar seus estudos. Formado em medicina, não quer clinicar. Pretende se especializar em Parasitologia, queria estudar artrópodos com Viñet e Morrales.
O nosso último passeio foi para os lados de Santa Justa, pelas encostas de lousa […] … peguei num bocado de lousa e joguei-o na cerca: a lousa fendeu-se e pareceu-me ver fóssil; engraçado se fosse fóssil; e era fóssil: trilobite.
– Olhe o que ficou deste bicho, Teresinha. O bicho morreu aqui: depois veio mais terra por cima e ele ficou preso e deu o jeito dele à pedra.
Era tudo quanto eu lhe podia explicar.
– Foi há muito tempo?
– Há muito tempo, Teresinha. Não havia ainda gente no mundo.
[…]
– Então podia ficar para aí sem ninguém nunca dar por ele.
– Claro que podia.
– Foi uma sorte a gente vir cá e o senhor jogar a pedra.
– Porquê, Teresinha?
– O senhor não acha que era triste se ninguém desse por ele? Para que é que valia a pena ter vivido?
Um fóssil, dando forma a uma pedra, encontrado e mais uma vez lá abandonado. Assim lá fica Teresinha, órfã e mais uma vez abandonada. Quase como se fora destinada a ser o objeto com que “deixar passar o tempo” … Aliás, de todas as três mulheres, esta é a única que tratará aos namorados que aparecem na novela como “Senhor”!
xxxxxx
Joan é encontrada numa aula de estudos clássicos, em Paris. Estudante inglesa. Mateus lhe faz a corte. Convida-a de imediato para um restaurante. Joan aceita e lhe diz que será bom que conheça Andrew Casterell, o namorado. Este estuda engenharia (aeronáutica) e pretende ser piloto. Os três se tornam amigos e passam a passear juntos em Paris, a fazer a ronda dos cafés, e a ronda dos museus sempre por insistência de Joan, que acaba sendo uma espécie de “comandante” dos passeios: define os lugares, define as visitas. Está estabelecido o triângulo amoroso, sem que jamais Mateus torne explícita sua paixão por Joan. Ao grupo, mais tarde, veio juntar-se o polonês Joy Virionik, trazido por Andrew.
Os tempos são dos inícios da segunda grande guerra. Hitler na Alemanha, o nazismo espancionista. Mateus insiste: a guerra chegará à França. É hora de partir. Mas os amigos recusam. Andrew acaba se apresentando como voluntário da força aérea inglesa; Joan abandona os estudos clássicos para fazer curso de primeiros socorros e torna-se enfermeira. Mateus volta à península, vem para sua terra em Ervide [Algarve? Alentejo?], terra que herdara, que viera do avô aos pais, e dos pais ao neto. Com casario senhorial. Com a grande mesa que já fora lotada de filhos, netos e agregados sob a batuta do avô. Mateus vive na preguiça, no passar dos dias, no nada fazer.
A mim, pelo contrário, o tempo me comia. O que era decerto censurável: e era censura que eu lia todos os dias nos olhos de minha avó, a Maria Mateus de que tiraram meu nome , e que eu ainda conheci em férias naquela mesma casa ou em Armação, e que ficara meio lendária na família […]
Mateus mantém o contato com seus amigos Joan e Andrew. Escrevi muitas cartas e inicialmente recebi respostas, quase imediatas. À medida que as forças alemãs entram em França, as respostas de Joan vãoi demorando mais a chegar. Mateus começa a se preocupar com os amigos, e através de embaixadas descobre que Andrew “killed in action”, e que Joan (esta foi mais difícil de encontrar) estava num hospital próximo a Biarritz. Mateus consegue atravessar a Espanha em trem, encontrar Joan na divisa e trazê-la para Ervide, onde recomeçam uma vida de amigos com longos passeios pelas redondezas.
Certo dia, Mateus recebe uma carta do Brasil: o governo norte-americano querendo expandir sua base aérea em Natal, precisa comprar terras. E parte destas terras pertenciam a Mateus, que as herdará da avó Maria Mateus, que um dia fora embora da casa grande de Ervide e enriquecera no Brasil… Mateus vai para o Brasil. Joan não quis acompanhá-lo. E enquanto ela volta à enfermaria de Biarritz, Mateus não retorna da América do Sul, por onde vaga pelo Brasil, pelo Uruguai, pela Argentina. Mas escreve para Joan, continua uma amizade “epistolar”. Terminada a guerra, numa destas cartas fica ssabendo: Joan e Joy haviam casado. E já tinha tido o primeiro filho que se chamou George, como sempre quis Joan homenagear o rei inglês. E insiste Mateus: que tenham uma filha, a quem dariam o nome de Mary, em homenagem ao próprio Mateus (lembremos: Maria Mateus, a avó; o heterônimo ou o nome do personagem memorialista, Mateus Maria Guadalupe, como aparece na nota prévia à 1ª. edição).
xxxxx
A terceira novela, e a primeira da coletânea, Herta, é a mulher loira, norte-americana, rica, toda de um barco (batizado de Herta) que Mateus conhece em Montevideu num passeio pelo cais em que encontra um patrício dos Açores pescando, e é precisamente um dos marinheiros do barco.
Na conversa fica sabendo: o barco é de Herta que vive pelos mares porque somente no mar poderia sobreviver Patrick, o pintor a que Herta ama e a quem dedica sua vida.
Quase ao mesmo tempo, um automóvel cinza transpôs o portão e veio devagar até junto de nós: quem quer que nele estava, e que eu via mal pelos reflexos da luz no pára-brisas, demorou-se dentro, pagando. E quando a porta se abriu, saiu uma mulher alta, direita e decidida, de cabelo negro cortado curto, e uns olhos verdes como nunca vi outros. Fitaram-se em mim apenas um momento. Mas só vi aquela cor duma outra vez: quando, perto de Ferragudo, olhado o poente, no instante exacto em que o sol se punha, o horizonte ao bordo de água teve um clarão brusco de esmeralda profundo.
Mateus se tornara definitivamente entomologista, especialista em parasitas homópteros… e recebe convite para um encontro com outros estudiosos em Dacar. Entre Baía e Dacar nem mar existe: só calor. Mas lá mais uma vez encontra o Herta atracado no porto, com sua bandeira de listas americanas.
Acabam se encontrando num bar: os entomologistas bebiam, e Herta com Mr. Pick (Patrick) entram. Compartilham a mesa do bar. Conversam sobre a vida, sobre filosofia, sobre o que pensa Patrick, pintor e pensador. Dos diálogos, extraio alguns enunciados:
… Eu pinto, ou tento pintar, dá no mesmo, modelos do mundo.
… o senhor acha que arte é capaz de modelar o mundo.
… o ponto difícil é saber por que motivo o artista influi sobre o mundo. Há duas hipóteses: o mundo é uma invenção do artista e na medida em que ele se transforma o mundo se transforma; outra, que talvez possa chamar… não, outra, apenas, a de que dentro do artista há algum núcleo fundamental que pode reunir o artista e a vida e fazer que desapareçam as antinomias.
… Haveria uma terceira […] a de que o artista é ele próprio a manifestação de alguma coisa de que o mundo é outra.
… o que o mundo afinal precisa é homem novo que seja, a um só tempo, a um só impulso e uma só obra, artista, sábio e santo.
… o senhor confunde saber com ciência; veja lá, uma coisa que o Sócrates deslindou há tanto tempo. Ninguém atinge santidade pelo saber; mas ciência é outra coisa, Sir: é descobrir o essencial na multidão do anedótico; a chave única das mil salas do palácio.
– Do palácio do real, do palácio do tempo e do espaço.
Terminado o encontro de Dacar, Mateus retorna para a América Latina e numa viagem em que sobre o Rio da Prata, segue pela Bolívia, chega à Amazônia, em Manaus toma um avião para Belém. O avião tem uma avaria: desce em Santarém. Pois em Santarém, no meio da floresta, no encontro do Tapajós com o Amazonas, Mateus sai da pista do aeroporto para a cidade matando o tempo… e encontra no restaurante em que entra nada menos do que seu patrício dos Açores, com o marinho de Vigo que fora o cozinheiro do Herta! E no almoço fica sabendo: Mr Pick tinha feito uma cirurgia, curara-se, mas o casal continuara navegando. Aconteceu um acidente: ele cai no mar e morre. Herta volta para a Califórnia, dispensa a tripulação… e os dois tentam a sorte em Belém. Não deu certo: instalam-se em Santarém…
xxxxx
Como se pode ver, a esta coletânea bem caberia o nome de Amores Infelizes ou Amores Irrealizados. Afinal, retorna a imagem: malmequeres entre amores-perfeitos. E o amor perfeito parece ser aquele que não se realiza: permanece sempre como o sonho estático do êxtase do encontro.
A apresentação das novelas em outra ordem que não aquela que lhe deu o autor tem uma razão de ser: compulsando o que se conta nas novelas e a vida de Agostinho da Silva, tudo faz sentido. Ele se tornou entomologista no Brasil. Ele andou pelo Uruguai. Ele viveu alguns anos “por aí…” até se estabelecer no Brasil. E faz sentido inclusive seu preceito da ética da renúncia. A renúncia ao amor sem deixar de amar. Afinal, em certo momento Mateus diz já no início da novela Herta: “ … acho que por excesso de vida exterior, o imaginar me ocorre tão delgado que apenas consigo narrar o que vi, ouvi e senti”.
Referência. Agostinho da Silva. Herta Teresinha Joan ou Memórias de Mateus Maria Guadalupe. 4ª. edição. Lisboa : Cotovia, 1990.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Comentários