Certamente entre Lorenza, a heroína deste romance, e a vida de Laura Restrepo há coincidências. A escritora colombiana foi militante política na clandestinidade (M-19), foi jornalista e exilou-se em Madri. Hoje é professora da Universidade Cornell, nos Estados Unidos. Numa passagem do romance, quase no final, quando Lorenza está no apartamento de Gabriela, sua amiga e antiga companheira de militância, há uma passagem que denuncia esta relação entre o romance e a biografia:
Entre nuvens de vapor e de felpas, ao compasso do barulho da prensa e da máquina, ia e vinha essa conversa carregada de confidências que antes não teriam feito, que certamente não fariam de novo. Os lençóis já bordados e passados iam se amontoando, mas era preciso juntar cada jogo – lençol de baixo, lenções de virar e um par de fronhas – para envolve-lo em papel de seda e guarda-lo cuidadosamente e sua caixa. E foi ali, no apartamento de Gabriela, que Lorenza acreditou ter encontrado o tom que ira permitir que ela escrevesse, agora sim, esse capítulo de sua história. Precisava pôr em palavras essa história até agora marcada pelo silêncio. Sempre soubera que cedo ou tarde teria que encarar a tarefa, não havia mais remédio, porque passado que não foi amansado com palavras não é memória, é espreita. O problema tinha sido como conta-lo, e agora pensava tê-lo descoberto: íntimo e simples, como uma conversa a portas fechadas entre duas mulheres que recordam.
A história: a colombiana Lorenza está em Madri na frente internacional de apoio à resistência à ditadura argentina. É membro do partido trotskista e depois da morte do pai, como se fora uma expiação pelo inalterável, propõe ao partido o trabalho direto em Buenos Aires. Vem como Aurélia, passaporte falso, trazendo dólares e microfilmes a serem entregues a Forcás. É recebida por Sandrita, outra militante, com quem passa a dividir apartamento. Em seu primeiro encontro com Forcás – Ramón Iribarren – para a entrega do material trazido de Madri ficam ambos interessados um pelo outro: química? Amor à primeira vista? Enfim, marcam novos encontros até decidirem viver juntos num pequeno quarto-apartamento num bairro de Buenos Aires. Têm um filho: Mateo. Quando este completa dois anos, ambos decidem que é hora de abandonar a luta contra a ditadura em função da segurança do filho: vão embora para Bogotá, a cidade de Lorenza. Lá o casamento começa a desandar. Separam-se e então acontece o “lance absurdo”: Ramón sequestra o próprio filho e volta com ele para a Argentina.
Este na verdade é o ponto de partida do romance: a mãe em busca do filho sequestrado pelo pai. Neste sentido, o romance adquire ares de romance policial. Mateo já é um adolescente e quer se encontrar com o pai. Mãe e filho viajam para Buenos Aires para procurar o pai. Toda a narrativa está estruturada em três diferentes cronotopos: o presente, que é a busca pelo pai; o passado de militância dos pais e o tempo da ditadura militar argentina que vai sendo contado pela mãe ao filho que quer conhecer o pai e do qual guarda lembrança muito esmaecida de seus dois anos e pouco; e o tempo terceiro do desespero da mãe com o filho sequestrado, em que se podem distinguir: a) o período de desorientação absoluta face ao sequestro, b) o período da espera do contato do sequestrador, c) o resgate do filho.
Estes três tempos e espaços se intercalam ao longo do romance, de modo que o leitor está acompanhando o fio de um enredo, suspende a sequência temporal para entrar noutro tempo e espaço sabendo que retornará àquele recém deixado. Esta técnica de recortes dá uma ligeireza incrível à narrativa e cria um suspense que leva ao leitor a querer saber afinal o que aconteceu no outro cronotopos enquanto está lendo recordações de outros tempos.
Assim, os três fios do enredo se encerrarão mais ou menos juntos: depois da queda da ditadura militar, o retorno a Buenos Aires, a indecisão do filho adolescente em ligar para o telefone do pai, por fim sua ida para Bariloche sem a mãe e de lá seu telefonema para o pai, que vai a seu encontro… a mãe saberá que o pai e filho estão juntos em Bariloche (precisamente onde ela recuperara o filho quando com pouco mais de dois anos) e saberá disso por um telefonema do filho. O casal não se reencontra, mas o filho encontra o pai e com ele fica, dizendo à mãe que seria até o fim das férias… Lorenza volta para a Colômbia mais uma vez sozinha! Mas com a certeza de que não perderá o filho uma segunda vez.
O leitor não só acompanhará a história de uma mãe e seu filho em busca do pai, mas ficará sabendo, através das remessas às atividades clandestinas da resistência, do clima de medo e sobrevivência numa ditadura militar.
Ao compor esta história, a narrativa dá aos militantes da resistência carne e osso, dá-lhes vida cotidiana. São heróis da resistência. São heróis demais: porque deslocados na resistência e para a resistência, quando o inimigo comum cai, novamente se tornam deslocados na vida comum. O sequestro do filho parece ser a única saída que restou a quem perdeu a luta ao perder os inimigos, perdendo também tudo o que sabia fazer: viver na clandestinidade.
Trata-se de um romance de linguagem simples e direta. De uma leitura fácil. Um destes romances que você começa a ler e quer ir até o final de um só fôlego, mas sabe que não conseguirá fazer isso sem paradas para pensar sobre as condições sociais de suas personagens, de seu tempo e de suas lutas.
Referência. Laura Restrepo. Heróis demais. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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