‘Future-se’, a universidade paga e sem pesquisa

Primeiro, recebi uma mensagem de Alexandre Costa: estão querendo excluir dos programas de pós-graduação brasileiros os professores que não tiverem parcerias internacionais. Costurei com meus botões: estes que nos cercam, estes com quem convivemos, estes que se pensam iluminados por prestarem assessorias a órgãos de financiamento e avaliação, como Capes e CNPq, estes que se dizem acadêmicos, estabelecem regras com base na realidade sonhada, imaginada e inexistente: a internacionalização de tudo e de todos, com produções ao estilo previsto de qualquer revista internacional, cuja redação deve passar pelos seguintes tópicos: objetivo, justificativa, metodologia, apresentação de dados da pesquisa, análise dos dados, conclusões (que devem ser sempre provisórias, não porque em ciência todas as hipóteses são provisórias, mas somente para abrirem o espaço para o próximo artigo, de modo que alguns destes ‘acadêmicos’ passam a vida a escrever sobre o mesmo, em cada artigo acrescentando uma vírgula…).

Quando diretor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, visitou a universidade um comitê executivo de um conglomerado de universidades ‘internacionais’ que tinha por objetivo compartilhar uma biblioteca virtual. Os institutos e faculdades mais equipados na época eram das ‘ciências duras’ – física, particularmente – e das engenharias.

A proposta entusiasmou seus diretores, mas o comitê insistiu em outra parceria: queriam digitalizados os livros de literatura brasileira e das ciências humanas brasileiras. Mas estes os setores menos equipados para a “internacionalização”! Como diretor, fui consultado sobre a viabilidade de digitalizarmos o acervo da biblioteca: respondi que para tanto precisaríamos de equipamento e pessoal, porque com os recursos disponíveis isso era impossível. Não sei se no final da visita a reitoria – era nosso reitor o Prof. José Martins Filho, da Medicina – e o comitê assinaram algum protocolo de intenções. Se assinaram, nada se concretizou com a digitalização da biblioteca do Instituto.

Conto esta história apenas para recuperar aqui que a forma de ingresso no mundo global é ser local, como defende Boaventura de Sousa Santos. Nesta historinha, as bibliotecas das engenharias e da física, com seu acervo internacionalizado, não interessaram àquele comitê executivo. No entanto, estes ‘acadêmicos’ não brasileiros que pensam fazer ‘ciência’ aplicando modelos a dados locais não conseguem entender o que seja ser ‘local’ e aí começam a fazer pressões para que todas as áreas em todos os campos, em cada firula e em cada vírgula, funcionem do mesmo jeito, isto é, apliquem modelos que não ajudaram a elaborar, em dados novos para comprovar as ‘teorias internacionais’. E aí querem expulsar dos programas de pós-graduação docentes que insistem em compreender o Brasil, compreender a educação brasileira, compreender a linguagem e as narrativas que circulam neste país. Sempre me lembro do Discurso da Servidão Voluntária.

Estes que já se “afuturaram” nem devem estranhar o que para espanto nosso circula nas redes desde que o Secretário de Ensino Superior, o Sr. Arnaldo Barbosa de Lima Júnior, avançou em sua exposição na Conferência Internacional sobre Financiamento Vinculado à Renda, na quinta-feira passada. Na reforma administrativa, em nome de um “Future-se”, destruirão as universidades públicas brasileiras. E num programa cujo objetivo seria o “fortalecimento da autonomia financeira das universidades e dos institutos federais”! Seria cômico, se não fosse trágico. Mensalidades serão cobradas – esta a “autonomia financeira” -; as instituições se tornaram fundações de direito privado; professores, pesquisadores, servidores não terão mais qualquer garantia de emprego; e a pesquisa irá para as cucuias… afinal, para que pesquisar no país, se podemos saber os resultados das pesquisas feitas no exterior numa consulta ao Dr. Google?

O que traz o governo fascista e anti-intelectual e anti-conhecimento e anti-povo brasileiro não deve espantar: os “acadêmicos” que foram criando regrinhas e mais regrinhas para uniformizar a pesquisa e para excluir indesejáveis estudos sobre a realidade brasileira pavimentaram o caminho para este “Future-se”. Porque para eles uma publicação de um artigo numa revista estrangeira – de preferência em inglês – vale mais do que publicar algo numa revista de um sindicato de professores que tenha mais de 25 mil leitores! Porque ‘acadêmico’ é somente o que soa em inglês!!! E para ninguém ler, é óbvio, principalmente quando o texto trata de tema como a educação brasileira, suas mazelas, a formação de seus professores, suas linguagens e os discursos e narrativas que aqui elaboram para justificar a desigualdade, a meritocracia, e a ignorância de seu entorno. O Future-se é consequência e aprofundamento da privatização que já vinha acontecendo por dentro das universidades, com as bolsas de produtividade, com as avaliações que privilegiam os bem postos e excluem aqueles que mais precisam de investimento, com as folpudas verbas de pesquisa vinculada a algum centro no exterior, obviamente.

A destruição, agora, vem para valer… Futurem-se! E o Future-se encontrará aplausos, sempre, entre os ‘acadêmicos’ da servidão voluntária.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.