Tem razão Silviano Santiago ao usar, na orelha do livro, a imagem das ondas do mar para descrever os capítulos que vão compondo este livro e sua história: ao chegar o fim de um capítulo, seria como se uma onda se desfizesse na areia para que o seguinte recomeçasse onde a onda se forma, se avoluma e volta a acalmar-se em espumas minuciosamente examinadas por um narrador onisciente, que nos vai apresentando as personagens desta aldeia à beira mar, onde as diferenças e as imposições do meio ambiente assemelham e diferenciam cada um.
Há uma personagem, o pescador Crisóstomo, o primeiro a ser apresentado ao leitor, que condensa o inverso do que se poderia chamar da ideologia do cotidiano compartilhada na aldeia, batendo-se contra a hipocrisia com que esconde, no entorno do que é o núcleo deste romance, a família e todas as limitações ao amor. Crisóstomo defenderá e ensinará a seu filho uma participação honesta, ainda que ínfima para o tempo de cada um, na honestidade na natureza do mundo em sua variedade e constância. Há no modo de ser, de agir e de se relacionar, e nos conselhos do pescador a seu filho, um mundo por viver diferente daquele definido como a estabilidade e fixidez deste núcleo familiar em que, por relações sanguíneas (e patriarcais), se reúnem sob o mesmo teto tão distintas pessoas.
Para alinhavar a história de um enredo complexo, tomemos o ponto de partida que nos dá o narrador: “Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo.” Desde então, abrem-se as possibilidades de um roteiro que poderia ser simples, repetindo o caminho já mil vezes trilhado: Crisóstomo tomar para si uma mulher e com ela fabricar um filho… mas aí se confirmaria a família tradicional, com as pessoas que se suportam em função do laço da consanguinidade. Camilo, o filho, será já um adolescente que ele encontra à beira mar e que o procurara em busca de trabalho. Repetidas vezes, ao longo do romance, repetirá “Amo-te, meu filho”.
O segundo capítulo nos apresenta uma anã, tratada por todas as mulheres de sua aldeia, em outra aldeia, como se fora alguém que por não ter crescido em tamanho, continuava sempre uma criança a brincar de viver. Todas lhe traziam presentes, o sustento diário além das preocupações e cuidados com sua saúde. Sua eterna infância era atribuída ao fato de que não poderia receber homem que a penetrasse porque lhe rebentaria internamente. Sempre amáveis e recebidas com amabilidades, as mulheres, no entanto, sempre viram o quarto da anã fechado. Em uma oportunidade em que esta buscou fora de casa algo para as visitas, a indiscrição levou a abrir a porta e descobrem uma grande cama de casal! Esta aberta a porta para o que virá: a anã aparece grávida e, por falsamente não quererem atribuir vida sexual à anã, as mulheres inventam histórias de possíveis paternidades. Ela, no entanto, dirige-se à polícia e apresenta uma lista de quinze nomes: um destes homens seria o pai de seu filho e deveria assumir a paternidade e a consequente responsabilidade. O delegado a convence: impossível saber quem o pai de sua gravidez. E a balbúrdia da desconfiança da traição torna as mulheres silenciosas e os homens cabisbaixos. A gravidez progride e muito antes de chegar a termo, sentido dores, a anã procura o médico da aldeia e este a acolhe:
Guardava-se no quarto dos doentes, metida numa cama lavada a descansar de ter engravidado. Não era que estivesse cansada ainda do ato, que esse teria sido já há um tempo e ninguém se lembrava de ela se ter queixado de nada. Estava cansada, subitamente, como se a ideia só por si já lhe pesasse e lhe começasse a mexer nos ossos. O seu corpo dilatava todo. As mulheres perguntavam isso ao doutor: foi violadinha, está com os ossinhos todos a abrir. O doutor ria-se e dizia que ela estava bem. As mulheres perguntavam: foi algum cão, algum bezerro já grandito, um bicho desconhecido. O doutor ria-se e dizia que ela estava bem. As mulheres perguntavam: podemos ver. O doutor respondia: hoje não, hoje não. As mulheres saíam, o doutor era malcriado e a anã uma ordinária. Rezavam depois o terço para pedirem que deus explicasse a situação e condenasse os pecadores. Rezavam preocupadamente pedindo uma justiça impiedosa contra os pecadores. Diziam: aquela sonsa há-de arder no inferno, e ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco. Depois, já dormiam melhor, embora sempre na expectativa das notícias do dia seguinte.
Nascido o filho com a morte da mãe, o leitor esperaria, na continuidade, que a história de Camilo, nome que lhe foi dado, aparecesse. Mas novamente a onda morre na praia, retornamos à aldeia de Crisóstomo e somos apresentados à família de Isaura, a mulher enjeitada. A jovem fora preparada para o filho do vizinho. Sabia dos “segredos todos”. Feliz, ela pensava que o rapaz poderia amá-la, mas depois reconsiderava: “a eternidade da vida era demasiado para qualquer fantasia, pensava nos pais e sonhava que o rapaz a amaria ao menos mais tempo do que os seus pais se haviam amado”.
Namoro vai, namoro vem, Isaura, depois de muita resistência, acabou deitando com o rapaz. E descobre: “afinal, o amor era ensanguentado e difícil. Focara no chão, suja pelas porcarias que as rodas das carroças traziam, e doíam-lhe as constas e mais os arranhões nas coxas. […] O rapaz tinha desaparecido, rapidamente do barracão. Ia feliz de alguma coisa que não acudia à rapariga.”
A mãe, a mal humorada Maria, descobre o acontecido, conta ao pai e este vai ao vizinho pedindo reparação: que casassem logo. Evidentemente nem os pais nem o rapaz não aceitaram. Diziam ao desconsolado pai que hoje em dia isso de virgindade não tem mais sentido. Isaura se torna a “mulher enjeitada” ainda que, tentando sempre salvar algo, deitava-se com o rapaz nas vezes em este desejasse.
Para a solidão de Isaura, aparece rondando sua casa um homem maricas: Antonino, filho de Matilde. É com ele que Isaura se casa… e na noite de núpcias, acorda percebendo que o marido lá não estava: “O silêncio não continha marido algum.” Isaura volta à solidão e começa a frequentar a praia, não como banhista, mas para olhar o mar e pensar.
Amanhecera vazia, sem ninguém dentro de si mesma, e foi como se encheu com a ideia de afinal ser impossível esquecer o amor. Porque o amor era espera e ela, sem mais nada, apenas esperava. A Isaura sabia que amava alguém por vir, amava uma abstração de alguém no futuro. Ela esperava o futuro, e esperar era já um modo de amar. Esperar é amar.
Nesta tarde de vazios preenchidos pela espera, Crisóstomo a vê e outra relação começa agora com mais amor e possibilidades. Mas o marido maricas reaparece. Embora o casamento tenha sido anulado pelo padre, Antonino era ainda vivo e seu marido. Então se inicia uma relação triádica, em que a Antonino caberá tornar Isaura bonita, penteada, maquiada para Crisóstomo, mas isso será depois. Por enquanto, mais um corte, e avoluma-se outra onda: Camilo.
Mal fechara os olhos a anã, e o filho tendo chorado – iria viver ainda que um ser diminuto, mas como “crianças são para depois, nunca apenas para agora” – havia que pensar quem o tomaria. Então aparece o velho Alfredo, viúvo e solitário que se candidata:
Hei-de fazer dele um homem antes que o tempo me venha morrer. Não importaria que tivesse um passado triste. O passado não corre. O doutor pensava o contrário. Pensava que o passado tinha pernas longas e corria, sim, e muito, como um obstinado a marcar a sua presença, a sua herança. O passado é uma herança de que não se pode abdicar, disse o doutor. O velho Alfredo encolhia os ombros. Não podia desfazer a história do menino, não podia suprimir a desgraça da anã ou a sua atabalhoada forma de se compensar do amor. Ninguém poderia biografar o Camilo novamente. Novo era só o presente e o que se pensasse do futuro. […] Fizeram-se os papeis. Engaram-se os papeis. Os adultos sorriram. O menino, quando amadurecido pela incubadora lenta, como um iogurte caseiro que fermentava, seria entregue. Haveria de ser colocado entre o amor de dois velhos, ela já morta e ele ainda vivo, apressado.
Camilo cresce entre livros e ensinamentos extremamente conservadores do velho Alfredo, que veio a falecer. O menino já adolescente fica dez dias em casa, comendo restos e sem saber o que fazer. Uma vizinha se apieda, vai à casa, arruma tudo, traz o garoto para dentro de sua própria casa e lhe diz que é hora de ele buscar meios de sobrevivência. Sai em busca de emprego, e encontra Crisóstomo. Torna-se não empregado, mas filho.
E eis que o homem que chegara aos quarenta anos e assumira sua tristeza de não ter um filho, agora constituía uma família: ele, o filho Camilo, sua namorada Isaura e o ex-marido maricas, Antonino.
Eis aí um jogo de destruição da hipocrisia que fazia da aldeia uma aldeia: a falta de amor (todas as mulheres personagens são tristes, viúvas e solitárias ou prestes a se tornarem viúvas, como era o caso da mal humorada Maria, mãe de Isaura. As outras, são figurantes que supostamente viviam junto a seus maridos, mas desaparecidos, apenas sugeridos que, afinal, uma aldeia não se povoa sem homens e mulheres).
Crisóstomo formara a nova família, tolerante, que aceita todo o tipo de amor e que areja com seu presente um futuro distinto. E este futuro será Camilo, que percorrerá seu tempo de formação com duplo trabalho: esquecer os ensinamentos do velho Alfredo (o da repetição do mesmo) e aprender a viver dentro dos novos ensinamentos do homem agora seu pai (as novas estruturas familiares). Este futuro de um amor ilimitado aparece no conselho do pai: o filho Camilo surpreendera o casal Crisóstomo e Isaura na cama.
O Crisóstomo então levantou-se, atravessou o quarto, saiu, foi ver o Camilo deitado e beijá-lo para dormir e disse-lhe: nunca limites o amor, filho, nunca por preconceito algum limites o amor. O miúdo perguntou: porque dizes isso, pai. O pescador respondeu: porque é o único modo de também tu, um dia, te sentires o dobro do que és. (grifos meus)
Para ensinamentos tais, a personagem central deste romance não poderia ser outra coisa que não pescador. Pescador que prega o amor. Pescador que não quer limites ao amor, ao amor entre os homens e entre as mulheres, apontado por outro pescador como caminho. Não como salvação em outro lugar, mas como possibilidade de salvação aqui e agora num futuro que mais de dois mil anos não conseguiu construir. Conseguirá?
Referência. Valter Hugo Mãe. O filho de mil homens. São Paulo : Cosac Naify, 2012.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Amei esse livro, Wando. Um dos melhores que já li.