A tragédia do par Hipólito/Fedra tem múltiplas versões. Originalmente de Eurípedes (480-406 a.C.), em dois textos Hipólito Velado e Hipólito Porta-coroas. Haveria também uma versão de Sófocles, de que restam pouquíssimas informações e que teria também sido referência para o texto de Sêneca. Em seu estudo “A releitura do mito de Fedra e Hipólito de Eurípedes e Sêneca – Interseções”(1) Fernando C. Zorrer da Silva, citando o crítico Pierre Grimal, faz referências à existência da obra de Sófocles. Em O livro dos livros perdidos(2), Stuart Kelly, no verbete Sófocles, não faz qualquer referência a esta possível obra perdida, mas também no verbete Eurípedes este autor não refere os textos da tragédia, já que seu objetivo era tratar apenas “das grandes obras que você nunca vai ler”.
Com uma ascendência desta ordem, que passa por Eurípedes, por Sófocles, por Sêneca e por Racine – entre aqueles cujas referências conheço – a versão que leio de Racine, numa tradução de Millôr Fernandes reconhecido por seus trabalhos de transliteração ao traduzir – foi feita para ser levada aos palcos pela primeira vez no Brasil, em 1986, com elenco que contou com Fernanda Montenegro, Cássia Kiss, Jonas Mello entre outros. Na nota publicada pelo tradutor no programa, ele pergunta retoricamente “Quem decidiu montar Fedra em 1986” e “acusa”: Fernanda Montenegro. E escreve:
“Tudo pensado – se é que tudo foi pensado – decidimos, Fernanda, Boal e eu, o que parecerá iconoclástico para alguns, desde saibam o que é iconoclástico, que a peça, em português, preservaria mais sua autenticidade se abandonássemos a forma rimada e alexandrina (tão emprenhada nos ouvidos franceses) pelo verso branco. Compensando a perda da rima pela clareza da ordem direta, ganhando reprodução do sentido exato das falas, no ritmo, na correspondência poética, no maior rendimento dramático por parte dos atores e maior facilidade de recepção por parte do público.”
Assim, temos hoje disponível um excelente texto através do qual podemos ter acesso à história trágica de Hipólito, pelo qual é apaixonada Fedra, mulher de Teseu. Lembremos, Teseu foi aquele que matou o Minotauro em Creta, auxiliado pelo fio que lhe deu Ariadne, irmã de Fedra; Ariadne amou Teseu, mas foi por ele abandonada – ele preferiu levar Fedra como esposa para Atenas; lembremos ainda, as duas irmãs são filhas dos reis de Creta, Minos e Pasifaé, “aquela senhora que se apaixonou por um touro, ora!, ora, e mandou ver, dando à luz o Minotauro” (Millôr Fernandes)reis de Creta.
Como se pode ver, Fedra traz de origem o comando da paixão. E desde que conhece Hipólito, filho de Teseu e Hipólita (Antíope?), rainha das Amazonas, precisa esconder a chama que a devora. Por isso persegue Hipólito, faz com que Teseu o exile em Tresena. Mas numa das viagens do rei, também Fedra vai para Tresena, acompanhada de seu séquito e de sua confidente, Enone. Lá o amor que recalcava reaparece com toda sua força. Fedra, para não se desonrar, decide que o melhor seria tirar a própria vida. As angústias da rainha levam à confidência de seu segredo e Enone convence-a:
Não, senhora! Esquece esse terror injusto!
É um erro perdoável e deve ser perdoado.
Tu amas! Não se pode lutar contra o destino.
Um encanto fatal te arrebatou a alma.
Será isso, no mundo, um prodígio tão raro?
O amor, por acaso, venceu somente a ti?
A fraqueza é natural ao ser humano;
Mortal, tens o destino dos mortais.
Lamentas um jugo que te escraviza há tanto tempo;
Mas os que moram no Olimpo, os deuses mesmos,
Que trovejam ameaças terríveis contra nossos delitos,
Também se queima, às vezes, em chamas proibidas.
Hipólito é desenhado como um jovem que não deixa dominar por Vênus: aparentemente não ama a ninguém. Mas confidencia a seu tutor, Terâmeno, que está apaixonado por Arícia, precisamente uma proscrita pelo pai.
Como surge o boato de que Teseu morreu em sua demorada viagem, Enone convence Fedra, cujos laços com Teseu teriam se rompido, a confessar seu amor a Hipólito, que o rejeita como uma desonra cruel. Rejeitada, Fedra pede a espada de Hipólito para se suicidar. Novamente Enone entra em cena para incitá-la a permanecer viva para garantir o futuro de seus filhos, já que a sucessão de Teseu seria disputada tanto por Arícia, única descendente da família desbancada do poder por Teseu como por Hipólito, filho da estrangeira. Entra então no jogo psicológico um embate entre a paixão que desonraria Teseu e Fedra e o instinto materno de proteção aos filhos.
Enquanto Hipólito resolve ir a Atenas para defender os interesses de Arícia, a quem confessa seu amor correspondido, Teseu retorna vivo de sua viagem. Está construído o drama: um amor desonroso ao leito do rei, mas confessado ao amado Hipólito, desespera Fedra. Por conselho de Enone, ela acusa o amado de ter tentado desonrar o pai. Este, furioso, expulsa Hipólito do reino e ora a Netuno para que execute o filho já que o deus lhe havia prometido atender a seu pedido.
Neste ínterim, Teseu depois de um encontro com Arícia, desconfia que ouvira falsos testemunhos. Manda chamar Enone, mas esta, a quem Fedra acusou de responsável pela tragédia, havia se suicidado entrando mar adentro. Chama pelo filho, manda procurá-lo para que se defenda.
No entanto, Hipólito que combinara com Arícia um himeneu às escondidas, para partirem juntos e com honra, se dirige para um templo abandonado na floresta. No caminho, de uma grande onda surge um monstro que assusta seus cavalos. Na narrativa posterior de Terâmeno:
Dizem até que alguém viu, na confusão caótica,
Um deus lanceando cruelmente
Os flancos enlameados dos nobres animais.
O medo os atirou em cima dos rochedos;
O eixo grita e se parte: o intrépido Hipólito
Vê seu carro quebrado voar em mil pedaços.
E ele cai, ele mesmo, embrulhado nas rédeas.
[…]
Eu vi, senhor, eu vi teu desgraçado filho
Arrastado pelos cavalos que ele mesmo criou.
Tenta detê-los mas sua voz os assusta;
Eles disparam; todo o corpo de Hipólito agora é só uma massa.
A tragédia chegou a seu ápice: Hipólito morto e Teseu descobrindo que foi injusto. Oferece o corpo de Hipólito a Fedra, para que goze ao “até o fim, justo ou injusto” sua vitória. Então ela confessa seu ‘crime’, inocenta Hipólito que será enterrado com honras, e diz que ela própria seguirá para o mundo dos mortos pois um veneno que lhe trouxera Medeia já circulava em seu sangue. Tudo isso não sem antes culpar Enone por ter sido aquela que, confidente, mantinha acesa sua paixão. Nos versos
Aduladores malditos; esse é o presente mais funesto
Que a cólera celeste reserva aos poderosos!
se encontra uma espécie de “lição” aos poderosos que Eurípedes, que havia na vida se tornado um grande crítico aos poderosos de Atenas, deixaria nesta tragédia. Zorrer da Silva, analisando a versão de Sêneca, aponta que esta permite outra compreensão: Enone com suas ações estaria fazendo de fato uma oposição ao donos do poder, fazendo-os aparecerem com realmente são.
Para fechar este registro, adiciono dois comentários. O primeiro está em Stuart Kelly:
Sófocles dizia que mostrava os homens como deveriam ser, mas Eurípedes os mostrava como são; naquele tempo, esse “realismo” era, sem dúvida, kconsiderado um defeito; com o tempo, tornou-se virtude. Eurípedes também mostrou as mulheres, pela primeira vez, como seres inteligentes, vingativos, complexos. A sua Medéia ainda impressiona, com a estrangeira assassina assumindo a estatura de uma deusa no final, e, sem dúvida, Filhas de Pélias, Mulheres de Creta e Alcmeão em Psófis também impressionariam se ainda existissem. Polêmico, Eurípedes usou a tragédia como veículo para especulações filosóficas.
O segundo comentário vem do mesmo autor, mas remete a Aristófanes que sempre elogiou Eurípedes. Em As rãs, quando Dioniso tenta libertar do inferno um dos maiores dramaturgos, perguntam-lhe:
– Para que você quer um poeta?
– Para salvar a cidade, naturalmente.
Em tempos em que há gente no poder que diz ter precisado de carpinteiros, de marceneiros, mas jamais de artistas, é sempre bom relembrar esta passagem de As rãs. Escrevendo esta nota, percebo que devo reler a comédia de Aristófanes! Nada melhor do que ler os clássicos para compreender o que nos acontece hoje.
Referências
Fernando Crispim Zorrer da Silva. “A releitura do mito de Fedra e Hipólito de Eurípedes e Sêneca – Interseções”. Revista Hélade,vol. 1, n. 2, 2015. Disponível em http://periodicos.uff.br/helade/article/view/10540/7340
Stuart Kelly. O livro dos livros perdidos. Rio de Janeiro : Record, 2007.
Referência: Racine, Jean Baptiste. Fedra. Tradução de Millôr Fernandes – 2ª. ed. – Porto Alegre : L&PM, 2007.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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